17.10.05

Hélia Correia em entrevista a Ana Marques Gastão

'Bastardia' é o último livro de Hélia Correia, editado pela Relógio d'Água. Uma bela narrativa sobre o poder do desejo, algo que o sujeito desesperadamente procura


A iminência do desastre atravessa Bastardia, que se debruça sobre o desejo, centrado nas sereias. Que é esse apelo aliado, tanto no início como no fim do livro, à decepção?


É algo que nos chama, não sabendo nós o que se lhe segue. Eu própria tive de chegar à decepção ao sentir destruir-se em mim a mitologia infantil quando me apercebi de que as sereias gregas não eram as mermaids que concebemos ao ler a história de Ulisses. O episódio das sereias representa a sedução feminina e o perigo que esta constitui do ponto de vista masculino. Ulisses sente-se chamado, corre perigo, mas, com as suas artimanhas, consegue ouvir o canto sem se perder. É uma imagem de grande beleza, um chamamento de beleza...

De esplendor?

Também, e de erotismo dificilmente realizável, mas que não deixa de ser erotismo. Num momento marcante da minha vida, estar com a professora Maria Helena da Rocha Pereira na Grécia permitiu, de forma esplendorosa, que eu me confrontasse com a realidade das sereias gregas, aves com corpo de mulher, bem como com a iconografia, que nada tem a ver com a nossa. Na pintura clássica, visualiza-se o barco perseguido por elas. A voz que seduz, destrói e aniquila os homens provém do feio, do monstruoso, e o que há de feminino no monstro é um rosto quase de harpia. Nada disto tem a ver com o nosso imaginário. Há um material imenso na Grécia que a nossa cultura não consegue entender e me fascina. Num primeiro momento, senti o deslumbramento perante o forjar da civilização, num segundo, aquele em que me encontro, sinto na cultura grega algo que me remete para a escuridão inicial. Ao contrário das nórdicas, as sereias gregas são seres da escuridão e cantam, chamam, no seu esvoaçar cruel, para a perdição.

A escuridão liga-se à decepção?

A decepção é a incapacidade de compreender um outro imaginário que não o nosso. É, por outro lado, desilusão sexual, a destruição da imagem da sereia como atracção e perigo. Fica o extremo dilaceramento.

São seres do mal, as sereias?

Seres do incompreensível. Há algo na nossa esfera mental que não alcança a cultura grega. Esse confronto, para o ocidental, é mortal, porque ele não está, de modo algum, preparado para a decepção.

Não se morre de desejo, mas não se regressa dele?

Não se morre dele, mas não se regressa igual. A história de Moisés, em Bastardia, relaciona-se com a dissonância entre os dois imaginários das sereias, mas a informação que ele recebe das mermaids não é muito forte, mais poderoso dir-se- -ia o universo das aves de rapina, rostos de mulher de absoluta estranheza que não pertencem a ninguém.

Filho do mar, Moisés? Que queria ele do mar, a sabedoria?

Sim. Acontece. Acredito nisso, que é possível existir um encontro, embora raro, entre energias vivas. Mas pode dar-se. Sendo filho do mar, Moisés tem a porção do seu desejo masculino encaminhada para as criaturas do mar. E ele queria saber, conhecer o pai.

Bastardia é uma narrativa cheia de mistério e de pressentimentos. Nela há dois rostos predominantes, o do pai e o da mãe. Quer falar deles?

Não os concebi previamente à escrita. Vi-os em situação. Gosto dela, daquela mulher, da sua imagem de camponesa com algo de rebeldia, de diferença que nunca leva a rupturas acabadas. O pai é um ser vago com a força da obstinação que tem quem lida com a terra. A acção decorre depois de O Crime do Padre Amaro e centra-se em Leiria, mas a Moisés só lhe interessa a direcção do mar.

Bastardo é, como diz, o que perdeu o dom da casa, o solitário?

Um ser marcado pela diferença, pelo segredo. Isso fá-lo perder os vários circuitos de protecção a família, a casa, a aldeia, a vila. Como qualquer filho bastardo, cuja bastardia é desconhecida pelos outros.

Fala-se do mal neste livro. A literatura torna-o mais inteligível?

Sim, mas não o considero uma questão contemporânea, embora esteja a tomar novas formas que não são ainda entendíveis. O mal que vem de outras civilizações é quase tão incompreensível como o que vinha das bruxas e dos seres demoníacos no tempo de Moisés.

A palavra tem o poder de o ver?

Talvez possa vê-lo, embora não deva. As palavras não devem proceder nesse sentido. Gosto apenas de segui-las nessa direcção, de expor o fascínio e a beleza que há nele, a energia também.

Está a falar dessa "coisa escura" que surge nas palavras, no correr do texto?

Não só, também da magia branca. Estou a falar de tudo o que escapou à pata civilizadora. Essas coisas gostam de palavras.

Não receia essa "coisa escura"?

Fui formada no receio da instituição. Os meus grandes medos - além dos normais das crianças e dos fantasmas das narrativas dos adultos - eram a polícia, a PIDE, o padre, tudo o que emanava da Igreja ou do poder. Isso levou-me a que os medos imaginários acabassem por ser menores e se tornassem mais atraentes. Passei a conviver amigavelmente com eles, até porque sempre existiam as fadas e os duendes que salvam.

Esta é "uma história assustada que corre de um lado para o outro, tentando libertar-se"?

Há uma corrida e um fim, uma chegada, uma luz que se liberta na história, nas palavras, e que vai ao encontro da decepção. Libertação num sentido amplo não a vejo, é mais uma obsessão, um impulso, uma busca de si mesmo.

Bastardia é, de alguma forma, o negativo de Montedemo?

Dir-se-ia a versão masculina de Montedemo, embora neste livro a vila seja a personagem. Bastardia é um cenário de sentimentos. Em ambos os livros há uma sexualização da natureza que pode chegar à fecundação de um ser humano.

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