13.1.06

A literatura e a vida (4)

"No resulta tarea fácil traducir una novela de Martin Amis, un autor que usa el argot con frecuencia, pero su último trabajo, Perro callejero (Anagrama), supuso un problema añadido: el lenguaje de los móviles. Su traductor, Javier Calzada, comprendió pronto que muchos de los SMS (siglas de la expresión inglesa short message system) incluidos en la novela por el polémico escritor daban mucho juego en inglés, pero trasladarlos al español, donde las vocales son el centro de las palabras, parecía imposible.

Para resolver semejante sopa de letras recurrió a sus hijos, los amigos de sus hijos e Internet. El resultado se lee así en una de las páginas de Perro callejero: "Hacia mediodía hora de Londres recibió el siguiente mensaje: 'Kerido: t agrdzdc tanto tu consolador mnsaje....no snada pro las cosas estan + clars ahora. Siento como si m hubieran quitdo un pso de encma. A1que mi pdre tenga que kedar hosptalizado en st andrews gravmt enfermo... ¿sabs que pienso k m estoy enamorando d ti, clint".

Pero la literatura no hace sino reflejar una vez más la propia vida. El uso de móviles y el envío de mensajes de texto se han convertido en un fenómeno social y lingüístico. Los últimos dos años han sido cruciales. Según datos de Telefónica, a finales de septiembre de 2005 el mercado español de móviles habría alcanzado un tamaño estimado superior a los 41,5 millones de líneas, lo que representa una penetración estimada del 93,4% de la población. Pero no todos los usuarios de móvil se expresan igual. Los más jóvenes -casi un 70% tienen edades comprendidas entre los 16 y los 24 años- han adaptado su propio código a base de abreviar las palabras para conseguir meter el máximo de información en los 160 caracteres que caben en la pantalla.

Cada SMS sale por unos doce céntimos de euro y el ahorro pasa por la ortografía. Entre el autor de este mensaje de móvil: "Hl a todos¡ q tal yo en kasa ya + adaptada studiando 1poco. T exo d-. Bss, tqm", y el de este otro: "Aviso a toda la población: el simulacro de paz y amor ha finalizado. Guarden los langostinos, insulten a cuñados y disuélvanse", media una diferencia de edad de casi 30 años y una frontera lingüística. Pero lo que a unos les limita porque acaba reduciendo su nivel de vocabulario, a otros -cada vez se amplía más el perfil del usuario a los 40 años- les ayuda a enriquecer la comunicación y con ella el idioma del que una vez más queda clara su capacidad de adaptación. De momento, ya funciona un diccionario de mensajes de móvil (www.diccionariosms.com) en el que se pueden consultar y traducir los términos SMS en castellano, catalán, euskera y gallego. El diccionario se ha realizado a partir de la recopilación de abreviaturas que se emplean en los mensajes de móvil y en los chats de Internet.

Quizá los datos ayuden a contrastar la dimensión del fenómeno. El pasado año, entre el 31 y el 1 de enero, 113 millones de mensajes de texto terminaron en la red de Movistar, y la pasada Nochebuena, entre las ocho de la tarde y las doce de la noche, 33 millones de usuarios de la misma compañía enviaron SMS; en otras fechas clave de las navidades se pueden realizar entre 20 y 30 millones de mensajes cortos.

Pero las expresiones aconsonantadas, abreviaturas como xq (porque) o el uso exclusivo de los verbos en el modo presente han trascendido ya el marco de la pantalla del móvil y de los chats entre los más jóvenes que empiezan a usar el mismo código en los exámenes.

"El problema no es la tecnología, sino la ignorancia", aclara el escritor y académico de la lengua Antonio Muñoz Molina, usuario obligado de un móvil por motivos de trabajo como director del Instituto Cervantes de Nueva York. "Lo que hace falta es una educación que favorezca el uso de la palabra; lo demás son códigos que de una u otra manera la juventud ha utilizado siempre para distinguirse del habla de sus mayores".

El autor de El jinete polaco se niega a ser apocalíptico sobre nada que tenga que ver con los avances tecnológicos o con la decadencia de la cultura. "Se dijo que el CD iba a acabar con el libro o que el ordenador acabaría con la máquina de escribir, pero las novelas se siguen escribiendo hasta con pluma. Se trata de tecnologías distintas que no afectan a la naturaleza de lo que se hace". Lo preocupante es que se escriba con faltas de ortografía o que ese código particular se transfiera a otro tipo de comunicación: "Nadie escribe como habla, ni se habla igual cuando te diriges a un amigo que cuando mandas un fax"."

Mais escolhas no "Mil Folhas"

"As escolhas de 2005

Mais uma vez o Mil Folhas pediu a romancistas, poetas, ensaístas, a tradutores e a cronistas que este ano publicaram que escolhessem os cinco livros de 2005, editados em Portugal e no estrangeiro, que mais gostaram de ler.

Escolhas de ALEXANDRE ANDRADE

Li poucos livros de 2005, pelo que a minha escolha se baseia numa amostra que nada tem de representativo, fruto de acasos, tropeções, e impulsos fugazes. Feita esta ressalva, começo por falar de José Tolentino Mendonça, cujo novo volume de poesia, “A Estrada Branca” (Assírio & Alvim), confirmou a sua tendência para sondar os fundamentos das relações humanas à luz de uma transcendência por vezes apenas sugerida ou adivinhada. Fascina-me o modo como cada um dos seus poemas encena uma micro-dramaturgia de tensões e perplexidade, remetendo-nos para a fragilidade e infinita estranheza de coisas aparentemente tão corriqueiras como dizer “Eu” e “Tu”. Simplesmente, um dos poetas portugueses mais interessantes e ricos da actualidade.

Descobri a obra de ficção de Frederico Lourenço ao longo deste ano, e, se bem que não seja capaz de aderir completamente a alguns aspectos da sua escrita, reconheço em “A Formosa Pintura do Mundo” (Cotovia) uma tentativa globalmente muito conseguida de combinar um tema dominante (as artes plásticas, e a pintura em particular) com uma predisposição formal muito deliberada, que se concretiza em desconcertantes miniaturas (por vezes não mais do que esboços), e que se harmoniza singularmente com o assunto adoptado. Lourenço cultiva uma ironia, um falso diletantismo e um gosto pelo postiço e pelo “trompe l’œil” narrativo com escassos paralelos no panorama literário do nosso país; e fá-lo de uma forma que nunca é gratuita – a não ser, bem entendido, quando a gratuidade serve os seus propósitos narrativos. Por fim, saliento o mérito (não tão menor como isso) de se tratar de um escritor que não tem medo de ser erudito, num país, como Portugal, em que a inserção de mais de dois nomes próprios por página pode parecer uma desfeita à honesta mediocridade nacional.

De Robert Walser prefiro falar pouco. Todo e qualquer discurso sobre o Walser-modernista-esquecido, sobre o Walser-escritor-para-escritores, para mais não serviria do que (e sem pinga de originalidade) obscurecer a euforia que se apodera do leitor ao percorrer as páginas de uma novela como “Jakob von Gunten, um diário” (Relógio d’Água). Há uma exaltação que se desprende desta prosa desprovida de clímax e espessura psicológica, uma efervescência lúdica segregada pela sucessão de derivas mentais e livre associação narrativa, mas também um lado sombrio e funesto, delicadamente omnipresente. Toda a gente devia comprar todos os livros de Walser à venda nas livrarias, e oferecê-los aos amigos; mas apenas aos bons amigos, e não aos sofríveis.


escolhas de ANTÓNIO MANUEL VENDA

1. “Os Impostores”, Santiago Gamboa (Asa)
O último romance publicado em Portugal do mais genial escritor sul-americano da geração que acaba por suceder a nomes como Gabriel García Márquez ou Mario Vargas Llosa. Três “impostores” – um jornalista e dois professores universitários – viajam até Pequim cada um com o seu objectivo, desconhecendo que estes são, afinal, o mesmo objectivo. A história é contada em parte pelo jornalista e em parte por alguém cuja identidade deixo a cargo da curiosidade do leitor descobrir.

2. “Bilhete de Identidade – Memórias 1943/ 1976”, Maria Filomena Mónica (Alêtheia)
Um género do qual por cá quase se poderia dizer que é novo, ao contrário do que acontece noutros países, como por exemplo em Inglaterra, onde a autora viveu. Uma autobiografia que, mais do que os primeiros 33 anos da vida de Maria Filomena Mónica, mais do que a sua história e as histórias daqueles que dela estiveram próximos, é um retrato de um outro Portugal, ainda bem próximo no tempo, mas distante, muito distante, perdido do mundo, como que encarcerado num filme a preto e branco.

3. “Mao – A História Desconhecida”, Jung Chang/ Jon Halliday (Bertrand)
Uma história da vida de um dos maiores monstros que a humanidade conheceu, capaz de surpreender até quem de ginjeira já conhecia esse mesmo monstro. A investigação é impressionante, mas mais impressionante do que isso é a escrita, soberba, como se estivéssemos na presença de um romance. Bom, não faltará quem veja em muitas das suas passagens apenas um romance, uma grande ficção, inclusive gente respeitável, mas isso são outras histórias.

4. “As intermitências da Morte”, de José Saramago, (Caminho)
Saramago ao seu melhor nível, num romance que é uma surpreendente reflexão sobre a morte, a partir da história de um país inominado, mas que tem tudo para ser Portugal, um país onde as pessoas deixam de morrer, coisa que logo do outro lado da fronteira continua a acontecer com normalidade. Imaginação fulgurante, capaz de se colocar bem ao nível da do brilhantismo reflexivo do autor.

5. “Flores Negras para Michael Roddick”, de Daniel Vásquez Sallés (Ambar)
O romance de estreia de Daniel Vásquez Sallés, filho de Manuel Vásquez Montalbán. Michael Roddick, antigo agente ao serviço da República Federal da Alemanha, tem um pequeno restaurante em Barcelona, a meias com Elena, a filha adoptiva. Este cenário de aparente calmaria vai dar lugar a uma história de acção e ‘suspense’, a trazer à memória do protagonista, e não só, espiões de outros tempos. Isto depois do aparecimento de uma visita inesperada. Com alguns pormenores da tradução a rever numa futura edição, a história é absolutamente fascinante.


escolhas de ANTÓNIO MEGA FERREIRA

“O Deserto dos Tártaros”, Dino Buzzati (Cavalo de Ferro)
A reedição (em nova tradução) deste enorme clássico da narrativa “metafísica”, que antecipou em duas décadas grande parte da ficção pós-modernista, foi uma das minhas melhores leituras do ano. Poucos livros têm este raro condão de constantemente remeter para um território do indizível, onde se confundem ecos de Gracq (uma vida suspensa da ameaça invisível) e visões de Hugo Pratt – Giovanni Drogo é um Corto Maltese sem aventura.

“As Paisagens Propícias”, Ruy Duarte de Carvalho (Cotovia)
A obsessão propriamente literária (a dos papéis perdidos, encontrados, só parcialmente decifrados) é, como sempre na ficção do autor, o pano de fundo desta ampla panorâmica do território explorado, o sudoeste angolano. Porque o território, a sua transformação ao longo dos vinte anos que medeiam entre a independência angolana e a data suposta de escrita, é que é o protagonista deste discurso obliquamente autobiográfico (um exercício constantemente retomado de auto-ficção), em que um novo mistério – o do branco da Namíbia – alimenta a busca incessante do narrador, a sua errância dirigida, que, parece insinuá-lo, é o que verdadeiramente importa. Destes céus era Melville, destes espaços é Ruy Duarte de Carvalho. O melhor livro escrito em português que me foi dado ler em 2005.

“Diário Remendado”, Luiz Pacheco (Dom Quixote)
O “Diário Remendado” é um romance: o romance de uma vida vivida à beira da privação e da perdição. O seu protagonista é um tal Luiz Pacheco, um corpo pensante, que sai ou não sai da cama, que vai ou não vai ao médico, que se masturba ou não se masturba, que se lava ou não se lava, que vai ou não vai a Lisboa. O “Diário” é a sua única terapêutica, o único destino possível para a sua degenerescência, que ele próprio considera abominável: como tal, é de uma despudorada franqueza, a que não é alheio um gosto quase masoquista da auto-flagelação. Apesar disso, “sinceridade” e “autenticidade” são categorias obsoletas e inadequadas para aplicar a um objecto literário com a força e a dimensão do “Diário Remendado”.

“O Pequeno livro do Grande Terramoto”, Rui Tavares (Tinta-da-China)
O leitor poderá pensar que este livro excelente se lê “como um romance”. Puro engano: “O Pequeno Livro do Grande Terramoto” deve ser lido “como um ensaio”, mas um ensaio de onde nem a imaginação, nem o humor, nem o sentido do pormenor estão ausentes. É o livro onde se assiste à construção da “imagem” do Grande Terramoto como elemento fundador de uma “nova” Lisboa e de um “novo” Portugal, e como referência obrigatória da reflexão filosófica sobre as “grandes catástrofes”, no mundo ocidental.

“A Conspiração contra a América”, Philip Roth (Dom Quixote)
E se Charles Lindbergh, o conquistador solitário das vastidões aéreas, simpatizante nazi e representante da América branca e “biologicamente pura”, tivesse sido eleito Presidente dos Estados Unidos em 1941? Roth prossegue aqui, em exercício delirante de ficção sobre a História, a sua desmontagem dos mecanismos que fizeram da América o desastre cultural que permitiu Bush e o império. Em mergulho à retaguarda, prossegue aqui a inquirição que o levara a “Casei com um Comunista”, que era um romance sobre o maccarthysmo e os anos 50. Vigoroso, amargo, implacável, mas ao mesmo tempo irresistivelmente “funny”.

E ainda: “A Cortina” – Milan Kundera (Asa); “Cinzas do Norte” – Milton Hatoum (Cotovia); “A Linha da Beleza” – Alan Hollinghurst (Asa); “Exterminem todas as bestas” – Sven Lindqvist (Caminho); “Realidade e Ficção, uma biografia epistolar de Fernando Pessoa” - Manuela Parreira da Silva (Assírio e Alvim); e as duas traduções (José Bento e Miguel Serras Pereira) do “Dom Quixote” de Cervantes.



escolhas de ARTUR PORTELA

Eis os livros que, vistos deste Dezembro, foram talvez as minhas cinco melhores leituras de 2005:
1.- “Pensei que o meu Pai era Deus”, antologia organizada por Paul Auster (Asa)
Estrelas na noite do Senhor Bush.

2.- “Os dias contados”, de José Sasportes, com desenhos de Jorge Martins (Dom Quixote)
A cultura como absoluto respiro.

3.- “O Senhor Calvino”, de Gonçalo M. Tavares (Caminho)
O génio servido à colher de café. Robusto e arábico.

4.- “Suite Francesa”, de Irène Némirovsky (Dom Quixote)
Balzac às portas do Holocausto. Na melhor França cai a nódoa.
5.- “Renoir, meu Pai”, de Jean Renoir (Bizâncio)
Uma narrativa sumptuosa. E uma admirável tradução de Francisco Agarez.


escolhas de AUGUSTO M. SEABRA

“The Ethics of Identity”, Kwame Anthony Appiah (Princeton University Press)
Ganês de origem, formado em Cambridge e professor em Princeton, Appiah é um dos grandes pensadores contemporâneos. A originalidade da sua posição no debate entre “liberais” e “comunitários” é o retorno a Stuart Mill para postular as liberdades e direitos dos grupos minoritários, mas também a sua desconfiança das identidades fechadas, antes defendendo identidades globais e valores universais. Por isso não argumenta em termo de “multiculturalismo”, mas de “cosmopolitismo enraizado”, numa reflexão a prosseguir em “Cosmopolitanism: Ethics in a World of Strangers”, a publicar este mês.

“The Assassin’s Gate – America in Iraq”, George Packer (Farrar)
O mais importante livro político do ano nos Estados Unidos. Um jornalista da “New Yorker”, defensor da intervenção no Iraque, traça o quadro da estratégia neo-conservadora e da incrível inépcia na preparação e condução da ocupação, no fosso entre as considerações ideológicas e o choque do terreno.

“The Google Story”, David A. Vise (MacMillan)
“The Search – How Google and Its Rivals Rewrote The Rules Of Business and Transformed Our Culture”, John Batelle (Nicholas Brealey)
A confirmação da ascensão e mesmo hegemonia da Google foi um dos acontecimentos estruturantes do ano. Estes livros são as duas primeiras abordagens, mais descritivo o de Vise, editor de tecnologia do “Washington Post”, mais abrangente o de Batelle, um dos editors da “Wired”.

“Constituer l’Europe”, Bernard Stiegler (Galilée)
No ano do bloqueado processo de uma Constituição política para a União Europeia, um filósofo que colocou a técnica no centro das suas reflexões interroga-se sobre a possibilidade de uma nova organização das trocas simbólicas que permita a singularização das nações e do motivo europeu num além da ordem industrial da produção e consumo.

“A Cortina”, Milan Kundera (Asa)
Uma outra vez, na esteira de Musil e sobretudo de Hermann Broch, Kundera reafirma o romance, a arte, como modo de conhecimento, e também como memória privilegiada da Europa.

“A Ideia de Europa”, George Steiner (Gradiva)
“L’Infinito Viaggiare”, Claudio Magris (Mondadori) “A Europa foi e é percorrida a pé”, afirma Steiner e esse é um dos traços distintivos que assinala. E Magris prosssegue as crónicas dos seus périplos europeus, mesmo que no caso com algumas incursões alhures.


escolhas de CARLOS FIOLHAIS

“Ilíada” de Homero, tradução de Frederico Lourenço (Cotovia)
Quem disse que um clássico não pode ser moderno?

“A Conspiração contra a América”, Philip Roth (Dom Quixote)
História virtual: o que teria sido a América se em vez de Roosevelt tivesse sido eleito o pró-nazi Lindbergh?

“O Mal no Pensamento Moderno. Uma história alternativa da filosofia”, Susan Neiman (Gradiva)
O que tem a ver o 1 de Novembro de 1755 em Lisboa com o 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque? E os dois com a filosofia?

“Sobre a Mão e Outros Ensaios”, João Lobo Antunes (Gradiva)
Quem disse que o neurologista Lobo Antunes fica, na escrita, atrás do seu irmão psiquiatra e também escritor?

“O Cosmos de Einstein”, Michio Kaku (Gradiva)
Como Albert Einstein transformou a nossa concepção do espaço e do tempo? No ano de Einstein, alguém disse que ele não tinha razão?



escolhas de CRISTINA SILVA

“Sábado”, Ian McEwan (Gradiva)
Um livro onde a atmosfera do mundo actual extavasa ao longo dos acontecimentos de um dia. E onde, apesar de tudo, aquilo que é mais humano - o amor e o sonho evocado através da poesia - conseguem subsistir e mesmo vencer tudo o resto que é terrível.

“No Coração desta Terra” , J.M. Coetze (D. Quixote) Um livro terrível onde a prosa do autor, o tom com que as palavras vão cobrindo as personagens, faz mover as personagens do coração de uma fazenda na Africa do Sul para o coração dos sentimentos que podem transformar qualquer homem ou mulher em seres profundamente solitários.

“A Conspiração contra a América”, Philip Roth (D. Quixote)
Um livro que parte de um cenário hipotético, a derrota de Roosevelt e a vitória de um canditado presidencial anti-semita na América durante a segunda guerra mundial. Os factos políticos hipotéticos cruzam-se com a vivência de uma família judia americana onde a mestria da arte de contar do autor transmite vida às consequências da discriminação.

“Memórias das minhas putas tristes”, Gabriel García Márquez (D. Quixote)
Um livro que é um cântico à ternura e à esperança com que o desejo pode prolongar a própria vida.

“O Engate”, Nadine Gordimer (Texto Editora)
Um livro onde o turbilhão do amor e do mundo se fundem numa escrita límpida.


escolhas de EDUARDO PITTA


Poesia
1. “Sol a Sol”, Armando Silva Carvalho (Assírio & Alvim)
Nunca a dimensão ético-política de uma obra se confundiu com ranço ideológico. Isso mesmo prova “Sol a Sol”, última recolha de Armando Silva Carvalho, autor que assume a afirmação do corpo cívico à revelia de arregimentações identitárias. Feridos de “realidade acabrunhada”, refractários a qualquer conveniência, estes poemas trocam o passo àquele que desde a Grécia antiga foi “trazido de rastos como um estafeta / Às portas da metafísica”. Epítome de um poeta que desde 1965 não pára de surpreender.


2. “Os Poemas”, Konstandinos Kavafis. Trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis (Relógio d’Água)
Não é a primeira vez que Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis traduzem Kavafis. Em 1994 foram 25 poemas; em 2005, a partir da edição crítica de G. P. Savvidis, fizeram chegar à língua portuguesa todo o “corpus” canónico: 154 poemas. Conseguimento maior. Edição bilingue, prefácio (de Magalhães) esclarecedor, notas criteriosas. Indispensável.


3. “Os Pré-Rafaelitas”, VV.AA.Trad. Helena Barbas, (Assírio & Alvim)
Em Portugal, a Irmandade Pré-Rafaelita era uma referência vaga fora de círculos de iniciados. Agora, graças a Helena Barbas, temos os poemas de Dante Gabriel Rossetti, Elizabeth Eleonor Siddal, Christina Rossetti, William Morris, Algerdon Charles Swinburne, e também um texto alegórico de Simeon Solomon, vertidos em português de lei. Além do prefácio, as notas bibliográfias, as tábuas cronológicas e as excelentes sínteses biográficas fazem deste volume uma antologia absolutamente de cabeceira.


Ensaio
“Lusitana Praia”, Vasco Graça Moura (Asa)
Colectânea de ensaios de um celebrado poeta, tradutor e romancista. Camões e o ensino da língua como móbil de polémica? Nem mais. Vasco Graça Moura “vintage”.


Ficção
“A Conspiração Contra a América”, Philip Roth. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues (Dom Quixote)
Falamos de Philip Roth como falamos de Melville ou Nabokov. Os clássicos levam sempre vantagem... Pergunta óbvia: e se o “plot” (a trama anti-semita) fosse realidade? Se Lindbergh tivesse chegado a presidente? Neste, como nos vinte e tal títulos que ficaram para trás, ficção nunca se confunde com teoria. Importam os pormenores: cheiros, sons, sobressaltos. A “Conspiração Contra a América” está cheia deles. O busilis é que livros como este obnubilam tudo à sua volta.


Biografia
“Álvaro Cunhal. O Prisioneiro”, José Pacheco Pereira (Temas e Debates)
O terceiro volume da biografia política de Álvaro Cunhal, obra do historiador José Pacheco Pereira, suscita um problema sério, qual seja o de colocar alto a fasquia do biografismo português. Nenhuma cedência, de ordem semântica ou passional, afecta o escrutínio dos factos. É incómodo em certos círculos? Decerto que sim. Mas não se pode compreender a sociedade em que vivemos sem escarafunchar a realidade. Incontornável.


escolhas de FERNANDO PINTO DO AMARAL

Irei cingir-me a cinco escolhas (por ordem alfabética...) que mostram a diversidade do que se publicou em 2005, embora não haja propriamente uma hierarquia. Poderia, portanto, mencionar também os contos de Frederico Lourenço (“A Formosa Pintura do Mundo”, Cotovia), a confirmação da voz de Dulce Maria Cardoso (“Os Meus Sentimentos”, Asa), uma narrativa de contornos autobiográficos de Enrique Vila-Matas (“Paris Nunca se Acaba”, Teorema), a poesia de Armando Silva Carvalho (“Sol a Sol”, Assírio & Alvim) ou de Nuno Júdice (“Geometria Variável”, Dom Quixote) e ainda os novos romances de Agustina (“Doidos e Amantes”, Guimarães) e Saramago (“As Intermitências da Morte”, Caminho), entre tanta outra coisa que marcou o ano de 2005. Mas quando fazemos balanços como estes, a pergunta que fica é sempre a mesma: daqui a 50 ou a 100 anos quem se lembrará destes livros?

1 – “Anos 70 – Poemas Dispersos”, Alexandre O’ Neill (Assírio & Alvim)
Quase 20 anos depois da sua morte, esta surpreendente recolha de poemas da década de 70 dispersos em jornais vem-nos recordar algum do melhor O’ Neill, entre os agitados ecos de um PREC que o génio da sua escrita soube desmontar com uma criatividade e um sentido lúdico ainda hoje difíceis de igualar. E deixa-nos com mais vontade de ver publicada a sua biografia, escrita por Maria Antónia Oliveira, que virá a lume em 2006 na Dom Quixote.

2 – “D’ Este Viver Aqui Neste Papel Descripto”, António Lobo Antunes (Dom Quixote)
Por iniciativa de Maria José e Joana Lobo Antunes, publicou-se este belíssimo volume de “cartas da guerra” que o seu pai enviou de Angola entre 1971 e 1973, sob a forma de aerogramas por vezes fac-similados. Além de acompanhar como um sismógrafo quase quotidiano os desejos ou as angústias de um jovem apaixonado em quem já se sentia uma irreprimível pulsão para escrever, este conjunto de textos deu-me também um melancólico retrato de uma época que correspondeu à da minha infância.

3 – “Sábado”, Ian McEwan (Gradiva)
Partindo de uma história relativamente simples e sem peripécias demasiado rocambolescas, Ian McEwan situa o seu protagonista (um neurocirurgião londrino) no cerne de alguns dos grandes conflitos e dilemas éticos do nosso tempo, neste início do século XXI em que a eterna questão do bem e do mal surge reactualizada perante a ameaça do terrorismo e a maior ou menor tolerância das nossas sociedades.

4 – “Os Poemas”, Konstandinos Kavafis (Relógio d’ Água)
Corolário de um longo trabalho de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, este volume reúne em português o legado de alguém que soube captar com um subtil poder sugestivo a atmosfera de uma Alexandria cujas figuras mitológicas se cruzam com imagens da sua memória pessoal. Ciente da efémera beleza de um mundo decadente, a escrita de Kavafis integra o lastro do passado no seu presente, mesmo sabendo até que ponto esse passado permanece definitivamente irrecuperável.

5 – “Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves”, Vasco Graça Moura (Quetzal)
2005 deixou-nos aquele que talvez seja, desde há alguns anos, o melhor livro de poemas de Vasco Graça Moura, dividido em oito partes distintas e retomando as linhas essenciais do seu percurso: uma dimensão narrativa por vezes de grande fôlego; uma linguagem ora coloquial, ora carregada de referências culturais; um irreprimível diálogo com outras formas estéticas como a música ou as artes plásticas; e a insistente preocupação com os principais temas clássicos – tudo isto servido por uma oficina cuja maestria versificatória se tem apurado cada vez mais.


escolhas de FRANCISCO JOSÉ VIEGAS


Sim, escolher cinco livros de 2005 é o maior dos riscos e não vale a pena justificar, tanto mais que a lista seria totalmente diferente daqui a quinze dias. É a vantagem dos livros: mudam muito de estante.

“On Beauty”, Zadie Smith (Penguin)
Zadie Smith é a autora de “Dentes Brancos” (Dom Quixote), de que gostei muito; este “On Beauty” é uma comédia fantástica sobre celebridades literárias e outros idiotas actuais que andam nas universidades e nas colunas de opinião. Se escolhesse ficção portuguesa, falaria nos livros de Rodrigo Guedes de Carvalho, de Fernando Campos, de Dulce Cardoso ou de Agustina Bessa-Luís.
“O Mal no Pensamento Moderno”, Susan Neiman (Gradiva)
Além de “A Ideia de Europa”, de George Steiner, do terceiro volume da biografia de Cunhal, de José Pacheco Pereira, de Isaiah Berlin (“Rousseau e Outros Cinco Inimigos da Liberdade”) e certamente do de Rui Tavares, “O Pequeno Livro do Grande Terramoto”, este foi o ensaio que mais prazer me deu ler. É uma reconstrução da história do pensamento à beira da catástrofe.

“Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves”, Vasco Graça Moura (Quetzal)
A poesia de VGM tem sido menosprezada por razões que não têm nada a ver com a literatura, e isso é uma enorme injustiça. Escolho-o como um dos livros do ano, o painel onde VGM prolonga aquela melancolia que nunca fica inteiramente romântica, cheia de ironia, de rigor e de boas sílabas. Isto num ano em que a poesia portuguesa nos deu novos livros de Nuno Júdice (“Geometria Variável”), de Tolentino Mendonça, Armando Silva Carvalho, Hélder Moura Pereira ou Isabel de Sá.

“A Conspiração Contra a América”, Philip Roth (Dom Quixote)
É o meu Nobel permanente desde que li “O Complexo de Portnoy”, “Pastoral Americana”, “Operação Shylock” e “Teatro de Shabat”. Se há romancista americano que nunca parou de surpreender e de ser livre é Roth. Gosto das suas obsessões e da tensão permanente em que vive toda a gente em redor dos seus livros – personagens e leitores. Além do mais, “Conspiração Contra a América” é o retrato de ameaça sobre a liberdade e uma releitura da história americana.
“Paris Nunca se Acaba”, Enrique Vila-Matas (Teorema)
Vila-Matas é um herói da literatura europeia de hoje, como poderia ser Sebald (“Os Emigrantes”), por exemplo. Acho que o escolho como uma homenagem à própria literatura e à sua obra, mais do que a Paris (de que não gosto).




escolhas de FREDERICO LOURENÇO

“Satyricon”, Petrónio. Tradução de Delfim Leão (Cotovia)
O mais prodigioso texto de ficção em prosa da Antiguidade, um romance “antigo” que ainda hoje nos parece pós-moderno. Os solavancos, as descontinuidades, a emotividade amarga, o brilhantismo retórico. Sexo, sexo, sexo. Admirável tradução de Delfim Leão.

“Ensaios sobre Eurípides”, Maria de Fátima Sousa e Silva (Cotovia)
Fátima Silva é professora catedrática da Universidade de Coimbra e uma helenista de rara e sólida competência. Esta leitura de Eurípides, o mais escorragadio e inabordável dos poetas gregos, revela-nos uma grande ensaísta, que escreve com cristalina limpidez, fina sensibilidade estética e exemplar pendor pedagógico.

“Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves”, Vasco Graça Moura (Quetzal)
Sentarmo-nos a ler poemas de Graça Moura é prazer intelectual em estado puro. Não é só o tão apregoado virtuosismo: é o milagre de tanta erudição, tanta cultura e tantas referências nunca redundarem em pedantismo. Na sua destreza técnica e na sua “Hochkultur”, VGM proporciona o prazer imediato e intemporal de na roseira despojada de ontem vermos hoje flor nova, porém flor de sempre, na máxima perfeição da sua simplicidade.

“Falsa Partida”, Fernando Luís Sampaio (Assírio & Alvim)
Uma surpresa, um encanto, uma comoção, uma perplexidade. Um livro lindíssimo.

“Poemas de Gastão Cruz” ditos por Luís Miguel Cintra (Assírio & Alvim)
Luís Miguel Cintra a ler poesia lembra-me sempre a célebre frase que Hindemith disse a Dietrich Fischer-Dieskau: “você não é um cantor, é um bardo”. A voz divina dos palcos e dos ecrãs não perde nada da sua beleza em CD, iluminando os poemas de Gastão Cruz (excelente selecção!) com o calor que por vezes pode faltar na frieza da página impressa. Arrebatador.



escolhas de GASTÃO CRUZ


“Génese”, António Ramos Rosa (Roma Editora)
Causa-me certa perplexidade que alguns dos praticantes de uma residual e errática crítica de poesia complacentemente se ocupem no elogio de livros em que não se vislumbra qualquer vestígio de invenção poética, últimas novidades de uma escrita básica, em que as palavras parecem destituídas daquele “peso” de que falava Carlos de Oliveira, ou em que essa invenção surge de forma “disparatada”, e ignorem obras maiores da poesia que hoje (ainda) se escreve em Portugal, como “Génese” de António Ramos Rosa. Talvez haja quem considere que esta poesia já não interessa. Ela não fala, na verdade, de bares nem de centros comerciais, temas em voga num sector poético, hoje em dia muito apreciado. O tema é a própria poesia (não diz Wallace Stevens “Poetry is the subject of the poem”?) e o seu “diálogo com o universo”; a partir dele construiu Ramos Rosa um livro (dois, na verdade, no mesmo volume: “Génese” e “Constelações”) que é, não apenas um dos mais notáveis saídos em Portugal em 2005, mas também um dos mais altos momentos da sua vastíssima obra.


“Sol a Sol”, Armando Silva Carvalho (Assírio & Alvim)
A poesia de Armando Silva Carvalho estabeleceu, desde o início, um equilíbrio entre uma intensa relação com o mundo real e a criação de uma linguagem cuja rugosidade e poder imaginativo profundamente o transfigura. Neste livro, de cumplicidade explícita com outras poesias, sobretudo a de Fiama, Armando assume a sua fidelidade à revolução poética dos anos 60 e reafirma-se como um dos grandes poetas portugueses do nosso tempo.


“Falsa Partida”, Fernando Luís Sampaio (Assírio & Alvim)
“Orbe”, Paulo Teixeira (Caminho)
Depois de “Escadas de Incêndio” (2000), Fernando Luís Sampaio regressa agora com “Falsa Partida”, onde consolida o seu lugar destacado entre os principais poetas revelados na década de 80. Com um estilo forte e amadurecido, que volta a provar como a atenção ao quotidiano e mesmo ao “fait divers” não são incompatíveis com a elaboração da linguagem e a capacidade de surpreender o leitor, “Falsa Partida” é uma das obras mais marcadamente pessoais e originais surgidas na poesia portuguesa recente.
Também Paulo Teixeira, outro dos mais representativos poetas da mesma geração, retoma em “Orbe” a linha de grande rigor e exigência da sua escrita.

“A Ordem do Mundo”, Rui Coias (Quasi)
Tendo-se estreado em 2000, com “A Função do Geógrafo”, Rui Coias logo se distinguiu, entre os poetas da sua geração, como um dos mais capazes de criar um mundo próprio. “A Ordem do Mundo” vem confirmar a importância da sua poesia, onde uma impressionante capacidade de invenção e estruturação de uma linguagem se desenvolve em versos de ampla respiração, povoados de poderosas imagens.

“Ilíada”, Homero. Tradução de Frederico Lourenço (Cotovia)
Depois da “Odisseia”, Frederico Lourenço realizou agora a tradução da “Ilíada”, mais um grandioso empreendimento que, de novo, integra num português poético qualificado e fluente um dos textos matriciais da nossa tradição literária.


escolhas de GONÇALO M. TAVARES

“Os Emigrantes”, W. G. Sebald (Teorema)
Quatro histórias de homens fora do seu sítio e fora do tempo; a última história concentra a tristeza irreversível que se instala ao longo da leitura. A degradação é sempre a força maior: “(...) no fundo, Manchester estava igual ao que era quando lá tinha vivido um quarto de século antes. O que se havia construído para obviar ao processo de declínio generalizado estava já por sua vez degradado (...)”

“Jakob Von Gunten”, Robert Walser (Relógio d’ Água)
O livro mais desestabilizador de Walser. O Instituto Benjamenta é uma escola estranha, perturbadora, mas ao mesmo tempo atraente - “como já disse, há falta de professores, o que significa que os senhores docentes ou educadores estão a dormir, ou mortos, ou a fingir-se de mortos, ou mesmo fossilizados, em todo o caso não sabemos nada deles.”
Jakob Von Gunten por vezes come “as refeições mais tolas” com um enorme entusiasmo, “como num conto de fadas e já não como uma pessoa de cultura numa era de cultura.”

“O Deserto dos Tártaros”, Dino Buzzati (Cavalo de Ferro)
Um dos romances importantes do século XX: alguém que espera a vida inteira pela guerra numa fortaleza obscura, repleta de rituais e sujeita à mais pormenorizada disciplina. Quando finalmente parece ter chegado o momento do conflito, Drogo, o protagonista, já doente, é afastado da Fortaleza remota como quem é afastado do centro do mundo. Também de Dino Buzzati “Os Sete Mensageiros” (Cavalo de Ferro) – talvez até, dos dois, o meu preferido. Contos intrigantes, alguns que permanecem suspensos, sem resolução, sempre sobriamente bonitos. O conto que dá título ao livro (“Sete mensageiros”) é um invulgar exercício narrativo sobre o espaço, o tempo, a distância e a memória. Um outro - “Sete andares” - apresenta uma estrutura semelhante (o número sete outra vez), mas aplicada numa linha vertical, estabelecendo uma relação entre arquitectura e doença; à medida que se descia no edifício surgiam os doentes mais graves, colocados em cada piso por via de decisões médicas e administrativas (numa confusão assustadora entre estas duas categorias). No primeiro andar, o mais baixo, estavam os moribundos. O conto relata a história de Giuseppe Corte que chega com “um pouco de febre” à “famosa casa de saúde”. Entra para o 7º andar e quase sem perceber porquê, vai descendo, descendo...

“Paris Nunca se Acaba”, Enrique Vila-Matas (Teorema)
Livro inclassificável, que dentro de si próprio coloca a questão: “Sou uma conferência ou um romance?” (questão que se põe também em relação ao excelente “Elizabeth Costello” de Coetzee). Uma autobiografia, em parte ficcional, de alguém que na juventude queria “estudar para Hemingway”; o pai do autor/narrador no entanto não estava de acordo: “‘Isso não se estuda em lado nenhum, não é nenhuma carreira universitária’, disse-me, e dias depois matriculava-me em Direito.”
Relato de um jovem escritor que saiu de Paris a saber “escrever à máquina”.

“Antologia”, Wallace Stevens. Trad. de Maria Andresen de Sousa (Relógio d’ Água): “No meu quarto, o mundo está para além do meu entendimento/ Mas quando caminho vejo que ele consiste em três ou quatro montes e uma nuvem”.
É de destacar também o trabalho das editoras Vendaval, Averno, & etc. E para além dos escritores portugueses conhecidos e consagrados gostaria de referir o nome de Alberto Velho Nogueira e os seus livros saídos na editora Homem à Janela – os livros encontram-se em algumas raras livrarias (por exemplo, na Assírio do King triplex em Lisboa). É um autor não muito fácil, mas que justifica uma leitura atenta e mais alargada.



escolhas de HELENA BUESCU

“Contos da Imagem”, Fiama Hasse Pais Brandão (Assírio & Alvim)
Três contos em que a poesia de Fiama pulsa e se dá a ler, em conversa com toda a sua obra poética: é pela imagem que tudo passa aqui, o registo do presente como a invenção do possível. Como sempre, com todos os títulos de Fiama, um marco para a nossa leitura.

“D’Este Viver aqui neste papel descripto. Cartas da Guerra”, António Lobo Antunes (Dom Quixote)
Cartas de amor em cartas de guerra, duas tão diferentes formas que aqui se tocam e confinam. A fragilidade destas duas experiências humanas, de que pode nascer a narrativa esburacada de como podemos viver no limite, para além dele.

“Conspiração contra a América”, Philip Roth (Dom Quixote)
Uma história sobre o crescimento do medo e a forma incontrolável como pode insidiosamente manchar e minar uma sociedade e, nela, todas as relações pessoais e de grupo. Fascismo na América? Uma magnífica fábula... sobre o que hoje é o nosso mundo, feito de tecidos antigos mais do que gostamos às vezes de admitir.

“Ilíada”, Homero. Trad. Frederico Lourenço (Cotovia)
Leia-se por exemplo com Philip Roth: a cólera de Aquiles é mais do que o lugar de onde parte a Ilíada - é paixão sobre que a nossa civilização, a nossa literatura e o nosso imaginário se fundam e a que sempre regressam. Esta tradução integral do poema homérico, pela primeira vez publicada em Portugal, é um acontecimento maior de 2005.

“Bastardia”, Hélia Correia (Relógio d’Água)
Mais uma notável narrativa de Hélia Correia, sobre os desabrigados do mundo e a forma como, apesar de tudo, nele vão navegando. Leia-se com “Lillias Fraser”, da mesma autora, e 2005 fará, apesar de tudo, bastante mais sentido.

escolhas de HÉLIA CORREIA

Este ano homenageio os mediadores que nos trazem aquilo que, de outro modo, seria inalcançável para nós. Estão entre eles, no meu caso, os tradutores de línguas: grego, antigo e moderno, alemão e latim. Estão entre eles os estudiosos. E estão também entre eles esses raros, os que sabem trocar com uma obra o diálogo intenso do fulgor.
Assim, escolho:
A “Ilíada”, de Homero, em tradução de Frederico Lourenço, ed. Cotovia.
A “Odisseia”, de Homero, em tradução de Frederico Lourenço, adaptada aos jovens, ed. Cotovia.
“Helena”, de Eurípides, em tradução de José Ribeiro Ferreira, ed. Festea Tema Clássico- Coimbra (É, creio, a primeira tradução para português).
“Os Poemas” de Konstandinos Kavafis, em tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, ed. Relógio d’Água.
“As Perturbações do Pupilo Törless”, de Musil, em tradução de João Barrento, ed. Dom Quixote.
“Satyricon”, de Petrónio, em tradução de Delfim Leão, ed. Cotovia (Primeira tradução para português).
“Odeio E Amo”, poemas de Catulo, em tradução de José Ribeiro Ferreira, ed. Minerva, Coimbra.
“Ensaios sobre Eurípides”, de Maria de Fátima Sousa e Silva, ed. Cotovia.
“Finita”, de Maria Gabriela Llansol, reedição com posfácio de Augusto Joaquim e fotografias de Duarte Belo, ed. Assírio e Alvim.


escolhas de INÊS PEDROSA

Ainda não foi em 2005 que a edição portuguesa ousou investir no ensaio, pelo que continuei a ler Zygmunt Bauman em tradução brasileira e Christopher Hitchens no inglês original. Mas o romance português mostrou o poder e a variedade das suas vozes: para além da alucinante experiência de “Jerusalém”, obra de maturidade de Gonçalo M. Tavares, assistimos ao sólido regresso de Rodrigo Guedes de Carvalho com o romance de um homem e de uma mulher escrito no fio de navalha da solidão, redescobrimos o Portugal desmoronado de 1755 através da imaginação de Miguel Real e atingimos o plano da morte intermitente numa parábola vigorosa de José Saramago. Mas pedem-me apenas 5 escolhas, de modo que selecciono os 5 livros portugueses mais feministas do ano. A palavra “feminismo” é composta por uma mistura de 5 ingredientes principais: inteligência, futurismo, estilo, independência, alegria. São eles:

“Dicionário de Crítica Feminista”, organização de Ana Gabriela Macedo e Ana Luísa Amaral (Afrontamento)
Obra absolutamente pioneira em Portugal, que apresenta, interroga e descodifica, numa escrita simultaneamente rigorosa e fluente, a História, os temas e o vocabulário do pensamento feminista.

“Doidos e Amantes”, Agustina Bessa-Luís (Guimarães) Um romance que, para além de nos oferecer o habitual doutoramento em Natureza Humana, narrado com a graça e a caótica beleza de que só Agustina é capaz, transforma a história (verdadeira) de uma vítima do poder patriarcal numa fábula visceralmente feminista, demonstrando que uma mulher não precisa de ser particularmente nova, nem inteligente, nem nada de especial, para se emancipar e escandalizar uma sociedade inteira.

“Longe de Manaus”, Francisco José Viegas (Asa)
A língua portuguesa reencontra a sua outra metade e torna-se uma perfeita hermafrodita, transando transatlanticamente, corpo a corpo, com grande garbo. Entre mortos e feridos, identidades trocadas e paisagens perdidas, as dedadas do amor quotidiano resistem e pintam um mundo de mulheres e homens infinitamente livres.

“A Palavra Mágica”, Rui Zink (D. Quixote)
O humor cáustico de Zink é a anestesia que impede a morte dos valores enquanto decorre a delicada operação desta escrita, que não tem medo de ir até ao osso das palavras, nem de devolver a cor ao sangue.

“Geometria Variável”, Nuno Júdice (D. Quixote)
“o poema corresponde à luz/ do sol, com a sua plena revelação do absoluto,/ sem provocar a cegueira”.


escolhas de JAIME ROCHA

A minha escolha vai para a Poesia. 2005 foi um ano fértil, com uma colheita de grande qualidade, quer de autores, quer de tradutores. Estes são alguns dos títulos que me ajudaram a enriquecer os dias.
“O Livro das Imagens” – Rainer Maria Rilke (Trad. de Maria João Costa Pereira), Relógio D’Água
“Ilíada” – Homero (Trad. de Frederico Lourenço), Cotovia
“Os Poemas” – Konstandinos Kavafis (Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Protsinos), Relógio D’Água
“Génese” – António Ramos Rosa, Roma Editora
“Lavra e Pousio” – João Rui de Sousa, Dom Quixote
“Poemas” – Óscar Wilde (Trad. de Margarida Vale de Gato), Relógio D’Água
“Requiem” – Jorge Gomes Miranda, Assírio & Alvim
“Longe da Aldeia” – Rui Pires Cabral, Averno
“Poemas” – Pier Paolo Pasolini (Trad. de Maria Jorge Pilar de Figueiredo), Assírio & Alvim
“O Livro das Quedas” – Casimiro de Brito, Roma Editora
“Chão de Vespas” – José Carlos Soares, Ed. do Autor
“Poesia em Viagem” – Blaise Cendrars (Trad. de Liberto Cruz), Assírio & Alvim
“Máquina de Relâmpagos” – Jorge Velhote, com fotos de João Paulo Sotto Mayor, Edições Afrontamento
“Poesias” – Stéphane Mallarmé (Trad. de José Augusto Seabra), Assírio & Alvim

escolhas de JOÃO BARRENTO

“Les paradisiaques” e “Sordidissimes” (vols. IV e V de “Le dernier royaume”), Pascal Quignard (Grasset, Paris)
Pascal Quignard é um escritor de fragmentos, autor de culto e solitário por opção. Começou a publicar em 2002 uma série de (últimos?) livros inclassificáveis com o título genérico “Le dernier royaume”, iniciada com “As Sombras Errantes”, o único editado em Portugal. Em 2005 sairam os volumes IV e V, repositório de experiências, leituras, lugares e memórias que recuperam “a voz do perdido”, anotações de um leitor compulsivo, dos mais consequentes, desarmantes, por vezes desesperantes. Sempre luminoso, muitas vezes ofuscante, a sua escrita cria leitores “medusados”, dependentes, enfeitiçados por palavras-sésamo.


“Finita”, Maria Gabriela Llansol (Assírio & Alvim)
É o segundo diário de Maria Gabriela Llansol, editado pela primeira vez em 1987, mas que agora reapareceu em segunda edição e em novo formato, acompanhado de imagens e de pensamento, as fotografias de Duarte Belo e o posfácio de Augusto Joaquim. O que é novo na nova edição de “Finita” é esta constatação, que quem conheça o diário facilmente faz: as fotografias abrem, com especial sensibilidade e precisão, a imaginação a figuras determinantes do “espaço Llansol”, ampliando-as através do inevitável corte operado no real (e no fluxo do texto onde elas vivem) pela objectiva do fotógrafo. A fotografia torna-se agora mais um instrumento de acesso às “dobras do mundo” na busca do mútuo, o cerne da obra de Llansol.

“Os Emigrantes”, de W. G. Sebald. Trad. Telma Costa (Teorema)
Segundo romance editado em Portugal (o primeiro foi “Austerlitz”), de um dos mais singulares autores de expressão alemã do século XX, emigrado muito cedo para Inglaterra, onde viveu e morreu. Trabalho sobre a memória pessoal e histórica em livros híbridos, meio ficcionais, meio biográficos e documentais, escritos com um sentido apuradíssimo do estilo, o que explica o seu tom talvez “démodé” e melancólico, entre a novela gótica e as parábolas kafkianas, com um virtuosismo que nos faz recuar até Proust e Nabokov. Uma escrita fora deste tempo, e que fará muito bem a este tempo.


“A Flor dos Terramotos”, Manuel de Freitas (Averno)
Último livro de um poeta em cuja obra vivência e escrita entram em consonância de forma consequente. A poesia não é aqui uma questão de “escola”, de estilo ou de forma, mas uma questão de ética – de uma ética da imanência guiada por um princípio de coerência e justeza. Apesar de toda a carga de pura contingência que se abate sobre cada poema, pratica-se nesta poesia uma aprendizagem, não do incerto e do vago, como a conhecemos das nebulosas elegias de alguns poetas “neo-melancólicos” da década passada, mas daquilo que temos de mais certo, a grande Morte que não se conhece, no meio das incontáveis e concretas encenações das pequenas mortes diárias.

“Aos Queridos Mortos”, Durs Grünbein. Trad. Fernando Matos de Oliveira (Angelus Novus)
Suicídios, acidentes, mortes estranhas e violentas, livres e provocadas: o mundo é uma grande feira onde se exibem as mais bizarras formas da morte, e as páginas dos jornais um manancial inesgotável de histórias e de matéria para epitáfios poéticos. De originais “epitáfios” se trata, de facto, no primeiro livro (mas não em absoluto dos primeiros poemas) publicado em Portugal do mais festejado e traduzido poeta alemão da última geração. Sobre o autor, visto como “enfant terrible” da poesia alemã dos anos noventa, o excelente posfácio de Fernando Matos de Oliveira diz tudo o que importa saber, e muito mais do que isso.

E ainda:
“O Livro das Quedas”, Casimiro de Brito (Roma Editora)
Inaugurou, com Ramos Rosa, uma nova colecção de poesia (“Sopro”), e é a síntese perfeita da poesia do autor.

“Hominescência”, “O Incandescente” e “Ramos”, Michel Serres (Instituto Piaget)
Trilogia fundamental na obra mais recente de um autor que busca as raízes do humano numa “cosmogénese” que reinscreve a história humana na do universo, uma “Grande Narrativa” comparada com a qual a História tradicional representa apenas uma minúscula película de tempo.


escolhas de JOÃO LOBO ANTUNES

“Acentos”, Fernando Gil (Imprensa Nacional Casa da Moeda)
Uma colectânea de ensaios de um pensador original e indispensável.

“Sábado”, Ian McEwan (Gradiva)
Um romance que se lê de um fôlego.

“Postwar – A history of Europe since 1945”, Tony Judt (William Heinemann)
Um “tour de force” de um dos historiadores políticos mais lúcidos do nosso tempo.

“A ideia da Europa”, George Steiner (Gradiva)
Um ensaio breve, escrito com comovente ternura e compreensível nostalgia.

“Vozes da Poesia Europeia”, tradução de poemas David Mourão Ferreira (Colóquio Letras)
Três volumes preciosos que ilustram bem como nem sempre tradução é traição.


escolhas de JORGE DIAS DE DEUS


“Anaconda”, Horácio Quiroga (Ed. Cavalo de Ferro)
Depois de “Contos de Amor, Loucura e Morte”, e de “Contos da Selva”, surgiu-nos em 2005 a série “Anaconda”. Quiroga é, como sempre, fabuloso, fantástico, ecológico, moralizante, dramático, humano e muito mais. Um grande contista uruguaio, de vida breve e agitada, quase desconhecido entre nós, do começo do século XX.

“Picasso, La Passion du Dessin”, Dominique Dupuis-Labbé, e outros (Ed. Reunion des Musées Nationaux)
É o livro que acompanha a exposição de desenhos de Picasso no museu Picasso de Paris: livro e exposição notáveis! Entre tudo o que impressiona, o que impressiona mais é, talvez, a colecção de estudos para preparação da estátua “ L’ homme au mouton” (“O homem do carneiro”), que, segundo Picasso, foi feita numa tarde, após meses de esgotantes estudos. São esses desenhos que explicitam a estátua. Do período da segunda Guerra e da Ocupação, a estátua é um grito estrangulado de esperança.

“Álvaro Cunhal, Uma biografia Política”, vol.III, José Pacheco Pereira (Ed. Temas e Debates)
O herói encontra-se aprisionado nas masmorras fascistas, mas a saga, ou melhor, a luta, continua. Os tempos são difíceis, a guerra fria avança, o isolamento e a desunião nas forças oposicionistas faz prever o pior - embora no fim tudo acabe em bem, com a grande fuga de Peniche. Fica registada a arte de Cunhal: na escrita, no desenho, na pintura.

“Escritos Sobre o Terramoto de Lisboa”, Immanuel Kant (Ed. Almedina)
Como é que Deus permitiu tal desgraça? Essa foi a grande pergunta que ficou sem grande resposta. Mas Kant não foi por aí, ele seguiu os fios da pesquiza científica e introduziu modelos de base física para explicar o terramoto. Tentou pois ajudar-nos a viver melhor com uma natureza que não subjugamos. A não perder o prefácio de Wolfgang Breidert e o posfácio de João Fonseca.


“O Universo, a nossa Casa”, Stuart Kauffman (Ed. Bizâncio)
Dez anos demorou este livro a vir de Santa Fé, nos Estados Unidos, até nós. Ainda vem a tempo. Querendo ir além do que Darwin disse, o autor trata da emergência e do aparecimento expontâneo da ordem que está subjacente à Vida em todas as suas variantes. É a teoria da complexidade explicada a toda a gente.



escolhas de JOSÉ MIGUEL SILVA

Num ano de relativa desatenção ao mercado editorial português, é-me impossível sequer a veleidade de listar algo como “os melhores” livros de 2005. Limitar-me-ei, pois, a escolher algumas das obras que especialmente me seduziram.
“Longe da Aldeia” traz-nos Rui Pires Cabral no seu melhor, o desencanto de tudo, num mundo em desconcerto e onde apenas a “inútil beleza” dos resíduos humanos, urbanos, vai permitindo responder afirmativamente a quem pergunta, com pesar, se ainda “há uma saída?”
Por similar vereda, tingida por irredutível mas terno desespero, a voz de Manuel de Freitas prossegue em “A Flor dos Terramotos” o seu rol de agravados, retratando uma Lisboa de feios, pobres e velhos, feridos de morte; num desmentido lançado aos optimistas do rendimento máximo e a todos os que acreditam que fechando os olhos se concerta a esperança.
Também de morte nos fala “Requiem” de Jorge Gomes Miranda, um poeta que sempre teve na família um dos seus temas de eleição. Nomear os nossos mortos é restituir-lhes um pouco do amor que nos deram; e a poesia sempre teve nesse desígnio uma das suas mais fundas razões de ser. Num registo ora mais lírico, ora mas prosaico, o autor compõe neste livro um expressivo retrato da falta, do abandono. Porque “só as lágrimas falam verdade”.
Como diria Clint Eastwood, “There are two kind of poets in this world, my friend”, os que não vêem mal nenhum, e os que não conseguem desviar os olhos. Estes são os que aprenderam a colocar-se no lugar do outro. É o que faz Alberto Pimenta em “Marthiya de Abdel Hamid”. O outro, aqui, é o povo iraquiano espezinhado pelas botas do bem. Umas botas sujas de cimento, que nada sabem da terra nem da “troca de pássaros/no centro da cidade”.
Outro dos momentos por que 2005 merecerá ser recordado é a tradução integral de “Os Poemas” de Kavafis, feita por Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. O grego de Alexandria, poeta que melhor soube dialogar com a história e com a memória do desejo, passa agora a ter residência fixa na poesia portuguesa.
Num povo sério, timorato e complacente como o nosso, o humor raramente vai além da chalaça torpe e rancorosa, reaccionária fiscalização de todas as diferenças. Mas há também quem saiba rir de si próprio, sem medo de perder a compostura. Em “Memorias de um Craque”, Fernando Assis Pacheco ergue breves episódios da sua infância à dimensão de um épico burlesco, pleno de humor e de inventividade verbal.
Quando as cidades portuguesas tinham ainda ruas, havia nessas ruas casas simples, harmoniosas, funcionais. Com o advento da sociedade de consumo, a pobreza que construíra essas casas deu por si cheia de vergonha, apeteceu-lhe fugir. Mas em vez de fugir foi-se espiritualizando, até ser quase só “cosa mentale”. Emigrou, enfim, para o cérebro dos portugueses. Só assim se explica a sanha com que entes públicos e privados se empenham, desde há trinta anos, em destruir a mais alta manifestação da cultura portuguesa: a arquitectura popular. Quando tudo estiver definitivamente arrasado, restar-nos-á, por sorte, chorar sobre as páginas de “Arquitectura Tradicional Portuguesa” de Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, reeditado em 2005.
De casas (ainda que assombradas) cuidam os ingleses. Numa dessas casas ao pé d’ “O Mar, o Mar”, instalou Iris Murdoch um divertido teatro de fantasmas que tem por centro Ch. Arrowby, um egotista, encenador fugido aos palcos e apostado em escrever as suas memórias e aprender a ser bom. Não consegue uma coisa nem outra, mas o seu falhanço é magistral e representa um dos cumes do romance inglês.
No âmbito dos estudos literários, merecem-me especial destaque “Ulisses e a Odisseia” de Pietro Citati e “Sobre Cultura e Literatura Britânicas” de Jorge de Sena.




escolhas de JOSÉ SASPORTES

Artur Portela, “As noivas de S.Bento” (D.Quixote)
Um romance subtilíssimo em que Artur Portela inventa os meandros da mente verdadeiramente tortuosa de um Salazar quase enamorado.
Henrique Dinis da Gama, “Baixa Pombalina ? a luz obscura do iluminismo” (Caminho)
Num ano em que se celebrou o grande terramoto e a reconstrução pombalina, um belo livro e um depoimento dissonante e refrescante de um arquitecto-fotógrafo que questiona a bondade das escolhas urbanísticas e
arquitectónicas da equipe do Marquês.
Machado de Assis, “Memórias póstumas de Brás Cubas” (Livros Cotovia)
Às vezes o leitor chega atrasado, mas, para mim, o prazer de descobrir só agora este romance moderno de Machado de Assis tem o sabor de uma revelação.

Georges Banu, “Nocturnes ? peindre la nuit, jouer dans le noir” (Biro editeur)
Na sequência de “Le rouge et or”, de “Le rideau ou la félure du monde” e de “L’homme de dos” , livros que exploram de forma original a nossa relação com o espaço teatral, Georges Banu dá nova luz à representação da noite na pintura e no teatro , ensinando-nos a avançar na sombra.
Flavia Pappacena, “ Il trattato di danza di Carlo Blasis, 1820-1830”(inclui texto em inglês), (Libreria Musicale Italiana)
Uma edição e uma apresentação do tratado fundador do bailado romântico, em que, pela primeira vez, se dissecam de um modo muito documentado as étapas que levaram à formulação de uma nova técnica de dança."

7.1.06

"Escolhas de", 2005

"Escolhas de LOURENÇA BALDAQUE
"Isräel: un examen moral", Avraham B. Yehoshua (Editora calmann-lévy, 2005)
"O ódio pelo povo judeu (...) tem uma causa profunda?" Com esta pergunta começa o ensaio, "Israel: un examen moral", ao longo do qual o autor tenta responder, através de uma análise crítica de elementos que constituem a história e a identidade do povo judeu, e do confronto ou reforço das ideias de historiadores que se têm debruçado sobre o tema. Trata-se de um livro que vem estimular a discussão, abrindo novos caminhos de reflexão sobre a questão de Israel e do povo judeu. Escrito por aquele que é considerado um dos maiores escritores israelitas da actualidade, e que acredita "profundamente nas lições da história, sobretudo no que diz respeito ao meu país."

«Trois jours chez ma mère», François Weyergans (Editora Grasset, 2005)
Vencedor do Prémio Goncourt 2005, "Trois Jours chez ma mère" conta a história de um escritor que numa série de "flashbacks", enquanto tenta acabar um livro, relembra aventuras amorosas, antigas amizades ou situações caricatas, mas também divaga sobre os projectos que tem em mão e que nunca consegue acabar. Trata da angústia de não concluir aquilo que se propõe fazer, com considerações sobre a vida actual, e de como o passado o influencia na escrita. São estas hesitações, memórias e fantasias que compõem o livro. Revela um humor irónico sobre as contrariedades da vida, que muitas delas aqui descritas são as do próprio escritor, que se põe no papel das personagens principais, seja François Weyergraf ou Graffenberg.
François Weyergans é romancista, crítico e realizador de cinema.

"As mulheres que amaram Juan Tenório", Hugo Santos (Ed. Dom Quixote, 2005)
Hugo Santos, poeta e romancista, venceu o Prémio Literário Miguel Torga 2005 com esta obra, onde o autor relata diversas experiências sentimentais de um jovem, numa pacata vila alentejana. Podemos considerar a personagem principal do livro como sendo um Don Juan moderno, uma possível reinvenção da personagem "Don Juan Tenório", de 1844, do espanhol José Zorrilla. De salientar a originalidade da escrita, que vem revitalizar e modernizar a eloquência característica dos finais do século XIX.

"Gli amori difficili", Italo Calvino (Editora Oscar Mondadori, re-edição em 2005)
Re-editado em Itália, "Gli Amori Difficili" é uma recolha de contos e duas novelas, escrito nos anos 50 e 60, editados pela primeira vez na Editora Einaudi em 1970. O autor trata o tema do silêncio inerente às relações humanas, - "um itinerário através do silêncio" - presente também no desejo secreto de concretizar aventuras amorosas. É esta aventura, que aqui nem sempre se concretiza, que Calvino expõe com ironia, transmitindo a sensação de uma felicidade esporádica e abstracta. As duas novelas no final do livro falam das calamidades naturais e da evolução da cidade industrial, contrapondo a alegria da imaginação, presente nos contos, com a dura realidade que o autor descreve no final.

"O Japão - uma antologia de escritos sobre o país", Lafcadio Hearn (Editora Cotovia, 2005)
Foi em 1889 que o jornalista de origem grega, Lafcadio Hearn, emigrante nos Estados Unidos desde os dezanove anos, foi enviado para o Japão, - numa altura em que o Oriente suscitava curiosidade aos ocidentais - a fim de se tornar correspondente de um jornal. Lafcadio Hearn apaixonou-se pelo país, onde se fixou nos últimos anos da sua vida, tendo deixado mais de 4.000 escritos sobre o Japão e as suas gentes. Neste livro encontramos uma selecção destes textos, com descrições poéticas e pormenorizadas, que revelam uma admiração autêntica pela cultura e costumes japoneses.

"Ilíada", Homero. Trad. Frederico Lourenço (Livros Cotovia, 2005)

"Poemas", Oscar Wilde.Trad. Margarida Vale de Gato (Editora Relógio d"Água, 2005)

escolhas de MANUEL JORGE MARMELO

"A Tempestade", de Juan Manuel de Prada (Âmbar)
"Jerusalém", de Gonçalo M. Tavares (Caminho)
"Estação Carandiru", Drauzio Varella (Palavra)
"A Margem Imóvel do Rio", Luiz António Assis Brasil (Ambar)
"Manaus", Francisco José Viegas (Asa)

Não sendo fácil, em nenhuma circunstância, escolher cinco de entre os muitos livros que se leram num ano, em 2005 a tarefa revela-se ainda mais complicada, tendo em conta que uma boa parte do tempo foi consumida a ler livros que, sendo de sempre, deviam ser dos anos todos. Falo concretamente de "Grande Sertão; Veredas", de João Guimarães Rosa, e de "Morte a Crédito", de Louis-Ferdinand Céline, na fantástica tradução que a Luiza Netto Jorge fez na década de 1980 para a Assírio & Alvim. Mas foram estas, em 2005, as leituras que mais marcas deixaram no leitor que sou, servindo de desigual ponto de comparação para os restantes livros que me passaram pelas mãos.
Dito isto, destaco cinco livros editados no ano que passou e que, por um ou outro motivo, me ficaram na memória. Desde logo, o luminoso, ensombrecido e veneziano "A Tempestade", do espanhol Juan Manuel de Prada, que cria um instigante clima de mistério em torno da interpretação de uma tela do pintor renascentista Giorgione. Por motivos não muito diversos, embora sem o peso suplementar da descoberta, retive a leitura de "Manaus", Francisco José Viegas, e de "A Margem Imóvel do Rio", Luiz António Assis Brasil, livros em que também está presente a componente viagem, o mistério e a demanda, e cujas narrativas são servidas por uma escrita límpida, enxuta, clara e inteligente, na qual se podem respirar diferentes ares. São, nos três casos, boas histórias bem contadas - e não há-de ser preciso dizer mais.
Para o fim deixo "Jerusalém", de Gonçalo M. Tavares, por constituir a confirmação de uma voz original e de um imaginário absolutamente próprio no quadro da actual literatura portuguesa, e "Estação Carandiru", a mega-reportagem que o médico brasileiro Drauzio Varella escreveu a partir da sua experiência profissional naquele que foi o maior presídio da América Latina. É um mergulho no inferno e convém que, de vez em quando, nele excursionemos.

escolhas de MARIA FILOMENA MÓNICA

1- Alan Bennett, "Untold Stories", Londres, Faber e Faber, 2005. É um livro comovente e engraçado, escrito por um dramaturgo inglês desconhecido em Portugal, autor de uma das mais geniais peças, "Talking Heads", jamais escritas para televisão. Na obra agora publicada, Bennett juntou , entre outros, um ensaio longo sobre a morte da mãe, os seus diários entre 1996/2004 e vários artigos sobre pintura.

2- Patrick Wilken, "Império à Deriva: A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro, 1808/1821"), Porto, Civilização, 2005. Não sendo especialista, não me pronuncio sobre os factos, muitos dos quais são, para mim, uma total novidade. Trata-se do tipo de obra que, sobretudo por más razões, poderá vir a ser cilindrada pelos especialistas. A verdade é que nenhum deles teve a imaginação suficiente para abordar o tema. A ideia é original, a prosa fluida e a caracterização das personagens soberba. O autor, um antropólogo australiano, decidiu não colocar as fontes em nota de pé de página, o que se lamenta.

3- Bryan Ward-Perkins, "The Fall of Rome and the End of Civilization", Oxford University Press, 2005. Trata-se de um livro pequeno sobre um tema enorme. A pergunta clássica - "Por que caiu o Império Romano?" - é abordada com clareza, originalidade e inteligência. O autor contesta a tese, modernamente tida como ortodoxa, de que o Império caiu, não violentamente, mas devido à transição pacífica para o domínio germânico. Revendo esta teoria, Ward-Perkins recorda a violência dos últimos dias do Império e as dificuldades que os cidadãos de Roma enfrentaram para se adaptar aos seus novos e bárbaros senhores.

4- Orhan Pamuk, "Istanbul: Memories of a City", Londres, Faber and Faber, 2005. Alguns leitores terão ouvido falar deste autor, uma vez que tem sido recentemente notícia nos jornais, devido ao facto de ter mencionado o genocídio, entre 1915/20, de um milhão de arménios, uma revelação que, segundo o Código Penal turco, é susceptível de o levar à prisão. O livro é um relato sobre a cidade que, em tempos, se chamou Constantinopla. Misturando memórias da sua vida pessoal e recordações da sua cidade natal, Pamuk dá-nos a ver o que era, e é ainda, uma cidade lindíssima, ao mesmo tempo melancólica e moderna.

escolhas de MÁRIO CLÁUDIO

Destacarei quatro obras portuguesas, três romances e uma antologia. Mas devo referir que ainda não li um bom lote de livros, publicados em Portugal no ano que terminou, e em relação aos quais alimento expectativas variáveis.

"A Casa Quieta", de Rodrigo Guedes de Carvalho, Publicações Dom Quixote, magnífico duelo com o tempo como só um escritor de qualidade é capaz de realizar, convida-nos a assumir a evidência de que um brilhante homem da comunicação pode coincidir com um criador literário de primeiríssima água.

"A Voz da Terra", de Miguel Real, Quidnovi, atrai-nos aos espelhos da nossa identidade, implicando-nos numa espécie de prodigiosa bulimia do verbo, e dos conteúdos por ele servidos, que nos confirma na consciência de que os livros maiores são afinal os que reclamam de nós múltiplas experiências de leitura, realizadas em tempos diversos, constantemente inovadoras, e constantemente empolgantes.

"Notícias do Labirinto", de Júlio Moreira, Ambar, realiza um belo exercício de destreza narrativa, associando o romance policial ao psicológico, e conduzindo todo um entrecho com invejável e luminosa ductilidade.

"Dez Cartas e um Bilhete-Postal para Eugénio de Andrade", de vários autores, Asa, configura uma esplêndida homenagem, vivida em textos de grande qualidade, e num aparato gráfico inigualável, ao poeta maior que recentemente nos deixou.

escolhas de MIGUEL REAL

1.- Eduardo Lourenço, "A Morte de Colombo" (Gradiva), o explícito fim do ciclo de pensamento heterodoxo na cultura portuguesa do século XX, iniciado pelo autor em 1949, com "Europa ou o Diálogo que nos Falta" ("Heterodoxia I");
2.- Carlos Leone, "Portugal Extemporâneo. História das Ideias do Discurso Crítico Moderno, Séculos XVI-XX", 2 volumes (IN - CM), ensaio que doravante revolucionará a historiografia cultural portuguesa, sobretudo o segundo volume, evidenciando o que de pré-moderno e moderno alimentou o pensamento português do século XX - daí o título de "extemporâneo";
3.- Mário Cláudio - "Os Sonetos Italianos de Tiago Veiga" (Asa), o triunfo do classicismo sobre o actual fragmentarismo poético - um "caso" que alimentará inúmeras teses de mestrado (se entretanto não forem substituídas por relatórios com 10 000 palavras, instituídos pela dominante mentalidade dos gémeos Sócrates-Cavaco) na segunda metade do século; medianíssima a restante poesia portuguesa publicada este ano;
4.- Ao mesmo nível de qualidade, "Longe de Manaus" (Asa), de Francisco José Viegas, romance dos destroços e da solidão do fim do Império, e "Bastardia", de Hélia Correia (Relógio d"Água), momento de suprema maturidade estilística da autora e entronização, depois de "Lilias" (2001), do realismo simbólico em Portugal;
5.- José Saramago - "As Intermitências da Morte" (Caminho), o derradeiro combate da permanente guerra do autor com o mundo, semelhante ao de Vergílio Ferreira em "Para Sempre"; aguardemos de Agustina o seu romance sobre a morte.

escolhas de MIGUEL SERRAS PEREIRA

Em lugar dos cinco livros publicados na região portuguesa, assinalarei cinco faltas, que provavelmente continuarão a sê-lo em 2006. As cinco poderiam ser largas dezenas, no mínimo. É absolutamente aterrador o volume das obras de primeira importância - incluindo autores portugueses clássicos e contemporâneos - que continuam indisponíveis na cena editorial deste país.
1. Em 2005, o ano do Quixote, deveriam ter sido publicadas em tradução alguns dos trabalhos de introdução e problematização da sua leitura. Citarei apenas um título, que conheci graças ao conselho precioso da Maria Fernanda
de Abreu: Augustin Redondo, "Otra manera de leer El Quijote", Madrid, Castalia, 2ª ed., 2005.
2. As principais obras de Zygmunt Bauman continuam por editar em Portugal. Que eu saiba, existe apenas, não sei se disponível ainda, um pequeno volume sobre "A Liberdade", editado há já anos pela Estampa. As suas análises sobre
o trabalho, a mundialização, a "modernidade líquida" são, no entanto, armas de inteligência crítica e democrática preciosas para quem queira abrir caminhos enquanto passa, nas presentes "encruzilhadas do labirinto" (Castoriadis).
3. Os escritos críticos e políticos de George Orwell - se exceptuarmos a edição de "Homenagem à Catalunha" dada à estampa pela Livros do Brasil em 1975, numa tradução que deixa a desejar - são uma ausência devastadora, que
se manteve em 2005. A necessidade daquilo a que poderíamos chamar um mínimo de decência institucional e política torna quase desesperadamente obrigatória a sua leitura e discussão.
4. Ex-doutoranda, continuadora e colaboradora do grande pensador e sociólogo canadiano do Québec Michel Freitag - este, com "Arquitectura e Sociedade", editado em estreia entre nós e em boa hora pela Dom Quixote -, Rolande Pinard deveria ter visto traduzido entre nós o seu livro "La révolution du
travail. De l"artisan au manager", onde, através de uma análise histórica apaixonante da evolução do trabalho, se mostra que a interrogação política fundamental do nosso tempo passa pela crítica da economia política dominante, na medida em que é esta o verdadeiro paradigma e centro do exercício do poder no mundo contemporâneo, sendo que a organização da sociedade segundo o modelo gestorial ("managérial", como se lê no original francês, editado na Europa pelas Presses Universitaires de Rennes, em França) do trabalho paralisa a nossa capacidade de agirmos como sujeitos sociais explícitos, tendendo a reduzir-nos cada vez mais a "cidadãos passivos" (sem voto na matéria, portanto), ou a menos do que isso. A leitura de Pinard seria, entretanto, precedida ou seguida com o máximo proveito pela do pequeno livro de Marc Augé, "Pour quoi vivons-nous?", que a partir de uma perspectiva e exemplos completamente diferentes suscita uma interrogação
política solidária.
5. Ainda na mesma ordem de ideias, é quase nula a disponibilidade dos escritos que têm vindo a animar nos últimos anos a discussão sobre "o fim do trabalho": seria importante que se traduzissem, citando-se aqui apenas
alguns exemplos lacunares e avulsos, as análises sobre a matéria de Jacques Ellul, Christopher Lasch, Richard Sennett (cujo ensaio sobre a "Corrosão do Carácter" teve, apesar de tudo, uma deficientíssima tradução portuguesa), Claus Offe, de novo Zygmunt Bauman, André Gorz, Robert Castel, Jeremy Rifkin, Dominique Méda, Manuel Castillo, Imanol Zubero. O enquadramento ou aprofundamento aconselhável aqui poderiam ser traduções de uma antologia de certos ensaios fundamentais de Castoriadis, e/ou dos escritos de tradição orwelliana de Bernard Crick: o clássico "In Defense of Politics", bem como "Democracy: a Very Short Introduction" e "Essays on Citizenship".

escolhas de NUNO CRATO

Em 2005 foi um ano editorial rico. Tanto na ficção como na divulgação científica, no ensaio e noutros géneros. Restringindo-me a cinco obras, e com consciência da arbitrariedade da escolha, destaco os seguintes.
"Ilíada", de Homero, editada pela Cotovia, em nova e fluente tradução de Frederico Lourenço, é uma escolha evidente. Talvez a primeira obra da literatura europeia, uma ponte de contacto perene entre nós e o nosso passado, uma oportunidade para ler ou reler a mãe de todas as narrativas, desta vez em tradução integral em verso.
"Rousseau e Outros Cinco Inimigos da Liberdade", de Isaiah Berlin, em tradução da Gradiva, é uma colectânea de seis palestras radiofónicas do grande pensador britânico. Tornaram-se famosas pela clareza com que trouxeram ao grande público a mais profunda análise da história das ideias. Interessante e inteligente.
"Curiosidade Apaixonada", de Carlos Fiolhais, é um dos grandes livros de divulgação científica do ano. Mais do que divulgação, é uma obra de cultura. Pela mão de um grande cientista português, que é também um arguto observador da vida, somos levados a ver a ciência por detrás dos locais, das coisas e dos acontecimentos.
"Como Vejo a Ciência, a Religião e o Mundo", de Albert Einstein, em organização e tradução da Relógio D"Água, oferece a muitos uma primeira oportunidade para conhecer o pensamento do grande físico. Leiam-se, entre outros textos, as primeiras impressões de Einstein sobre os Estados Unidos, país onde escolheu viver o resto dos seus dias, o seu elogio de Copérnico e os seus curtos escritos sobre educação.
"Os Relógios de Einstein e os Mapas de Poincaré", de Peter Galison, em tradução da Gradiva. Um dos maiores historiadores de ciência da actualidade revela o ambiente em que a Teoria da Relatividade foi criada e mostra como as preocupações práticas com problemas de sincronização de instrumentos podem ter influenciado e estimulado o jovem Einstein.

escolhas de NUNO JÚDICE

Está na moda dizer mal da França e da cultura francesa : é por isso que ponho em primeiro lugar um livro inteiramente francês, no espírito e na letra: o "Dictionnaire égóïste de la littérature française" (ed. Grasset). São 962 páginas de puro gozo intelectual, onde ficamos a saber que Napoleão se deliciava em Santa Helena com a leitura de "Paul et Virginie" ou que Richelieu tinha ao seu serviço Corneille para lhe escrever as peças de teatro que ele assinava. Também da Grasset (pura coincidência) recomendo o luso-francês "Poulailler" de Carlos Batista. Tradutor de António Lobo Antunes para a Christian Bourgois, Batista escreve um romance que apresenta um retrato da emigração portuguesa em França sem qualquer complacência, integrando o relato realista das duas gerações - a dos pais, posta à margem da integração, e a dos filhos, que procura encontrar o seu lugar na sociedade francesa onde é sempre vista na dupla situação de pertença e exclusão - dentro de uma alegoria do galinheiro, com uma crueldade que evoca Kafka. Quanto a Portugal, chamaria a atenção para dois livros de poesia: um magnífico e sólido "Laocoonte, rimas várias, andamentos graves" de Vasco Graça Moura, que prossegue o diálogo com literatura, música, artes plásticas, de um poeta que vai colocando as suas peças no tabuleiro da memória dos dias e das estações do ser; e a "Poesia reunida (1990-2005)" de Ana Luísa Amaral, que a confirma como uma das mais coerentes escritas da nossa poesia contemporânea, que integra plenamente a dimensão do quotidiano, do real e de um presente que sugere o poema como espaço duplamente reflexivo, em que o poético resulta por vezes de um simples desvio de sentido ou da passagem para uma metáfora englobante do universo envolvente que o poema constrói. Por fim, na ficção, "Doidos e amantes" de Agustina Bessa-Luís: retomando a tradição portuguesa do folhetim, trata-se de uma história de amor louco passada na nossa 1ª República, que Agustina revê à luz de um olhar íntimo e cruel sobre a paixão que subverte o equilíbrio social, na sequência aliás de dois outros livros seus que seguem o mesmo projecto, "Adivinhas de Pedro e Inês" e "Florbela Espanca", assim se completando uma notável trilogia sobre a mulher vencida pelas circunstâncias da política, da literatura ou da moral. Poderei discordar da visão que nos dá de Maria Adelaide (também há anos me passou pelas mãos o seu testemunho impresso em que ela rejeitava a acusação de loucura que lhe foi feita pelo marido, com a cumplicidade de conhecidos médicos da época) mas trata-se de um livro a não perder, de entre alguns outros romances que mereceriam destaque neste ano de 2005.

escolhas de NUNO MARKL

"À Boleia pela Galáxia", de Douglas Adams (Ed. Saída de Emergência)
Adams é um genuíno poeta e filósofo da comédia cuja obra é pouco conhecida em Portugal. Ele foi uma espécie de sexto elemento invisível dos Monty Python antes de se dedicar a escrever esse monumento do humor, de sátira social e da ficção científica mundial que são os cinco volumes da saga "The Hitchhiker"s Guide to the Galaxy". Uma das virtudes do filme que estreou, baseado no primeiro livro da saga, foi conquistar o interesse de uma editora portuguesa em reeditar esta pequena grande obra-prima. Não é um livro fácil de traduzir, mas fiquei feliz ao constatar que esta tradução presta um óptimo serviço às palavras e ao tom muito peculiar de Douglas Adams. O filme acabou por não ser um êxito gigantesco de bilheteira, mas espero que isso não desencoraje a Saída de Emergência de traduzir o resto da saga. Independentemente de qualquer filme que se faça, as aventuras de Douglas Adams são, acima de tudo, livros magníficos.

"Everything is Illuminated", de Jonathan Safron Foer (Penguin Books)
A primeira edição deste livro é de 2003, mas este ano ele foi reeditado com nova capa, ligado à estreia do filme que nele se baseia. Eu fiquei conquistado pelas imagens que vi do filme e comecei a investigar na Internet sobre a obra deste jovem escritor americano. Acabei por encontrar esta nova edição e fui, de facto, iluminado. Há muito tempo que um livro não me deixava tão sem palavras, tão incapaz de continuar a ler sem reler esta e aquela passagem. Dei por mim a interromper várias vezes a leitura para ir a correr ter com quem estivesse por perto, ansioso por partilhar momentos deste livro. É uma história sobre um jovem americano na Ucrânia, em busca das suas raízes e é uma fusão de comédia, drama, poesia, contada através de cartas, apontamentos, esboços para um romance. É um milagre. Não me arrependo de ter preferido a versão original à tradução portuguesa, porque muita da magia do livro tem a ver com a maneira como a língua inglesa é reinventada por um dos narradores, um guia ucraniano.

"Gato fedorento: o Blog", de Miguel Góis, Ricardo de Araújo Pereira, Tiago Dores, Zé Diogo Quintela (Cotovia)
Serei sempre fã deste bando e sou continuamente surpreendido por eles. Este livro é a prova viva de uma versatilidade que eu conheci de perto, ao trabalhar com todos eles nas Produções Fictícias. É totalmente diferente da série de televisão, mas igualmente inspirado. Aqui, os gatos estão em modo de alfinetada na actualidade, num livro que, se um dia houver um curso sobre a escrita e o poder dos blogs, deveria ser de leitura obrigatória. É particularmente divertido acompanhar as polémicas que eles foram coleccionando ao longo da existência do blog e a quantidade de pessoas que conseguiram irritar e confundir. Gosto de os ver na televisão, mas tenho pena que isso lhes roube tempo para continuarem a escrever no blog.

"Great Lies To tell Small Kids", de Andy Riley (Hodder & Staughton)
Andy Riley é um guionista britânico de televisão que criou material para algumas das melhores "britcoms" recentes. Até ao lançamento dos seus dois deliciosos volumes dos "Coelhinhos Suicidas", o mundo desconhecia o talento dele para criar "cartoons". Não só ele desenha maravilhosamente, como consegue, com imagens estáticas, criar uma respiração de desenho animado. Este novo livro dele mantém a veia politicamente incorrecta dos "Coelhinhos Suicidas", mas vai mais longe, porque trabalha agora com texto, criando um rol de mentiras que vão desde a provocação à "South Park" até momentos de uma estranha e inesperada poesia visual. Gosto particularmente da mentira que diz que, antigamente, antes de haver iPods, as pessoas tinham de andar com uma orquestra privada atrás, tocando as suas músicas preferidas.

"Nove Histórias", de Eduardo Madeira (Plátano Editora)
Portugal é um país fútil e superficial, pelo que imagino que muita gente (incluindo gente supostamente informada) passe ao lado de "Nove Estórias" colocando-lhe a etiqueta de "livro de piadas escrito por aquele gajo que faz entrevistas em festas, na SIC". Acontece que o Eduardo Madeira é muito, mas muito mais do que isso. Não só é um brilhante argumentista de humor para os mais diversos meios, como é também um autor de hilariantes e inteligentes "short stories" que fazem lembrar o Woody Allen dos tempos de "Sem Penas" e "Para Acabar de Vez com a Cultura". Admiro, neste livro, a maneira como ele consegue imediatamente arrancar gargalhadas ao leitor ao fim do primeiro parágrafo da primeira história. Não é qualquer autor de humor que consegue uma proeza destas. Este livro merece ser descoberto.

escolhas de PEDRO ALMEIDA VIEIRA

"Longe de Manaus", de Francisco José Viegas (Asa)
Quem espera um romance policial, desengane-se. FJV consegue, com o seu "alter ego" Jaime Ramos, subverter o género policial, criando um fascinante livro sobre a natureza humana e, enfim, sobre a vida.

"O Cavaleiro da Águia", de Fernando Campos (Difel)
Primeiro livro que li após terminar o meu romance. Fez-me bem para me colocar no meu devido sítio: Fernando Campos consegue, com a sua prosa poética ímpar, um relato sobre um período histórico (nas vésperas do nascimento de Portugal) onde não há heróis nem vilões; apenas homens e mulheres. O recurso aos intermezos dos capítulos é uma mais-valia deliciosa.

"Inveja - Mal Secreto", de Zuenir Ventura (Palavra)
Este jornalista confessa, no início, que sentiu uma "mordida" ao constatar que, de entre os escritores brasileiros convidados para escrever sobre os sete pecados mortais, tinha ficado com o menos apetecível: a inveja. Mas, afinal, acabou por escrever, misturando reportagem, biografia e ficção, um invejável livro sobre este pecado que todos conhecem, mas muitos poucos confessam.

"As Intermitências da Morte", de José Saramago (Caminho)
Quem acusa Saramago de ter perdido o talento após receber o Nobel deveria curar-se da inveja (lendo talvez Zuenir Ventura). A ideia explorada nesta sua recente obra é brilhante (uma espécie de literário ovo de Colombo) e a escrita (sobretudo na primeira parte) possui um humor refinado. Saramago, que já é um escritor imortal, acaba por conseguir, como homem mortal, gozar com a (minúscula) morte.

"O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa", de Miguel Real (Quid Novi)
Depois de consultar mais de uma dezena de biografias e ensaios sobre o Marquês de Pombal para a escrita do meu romance, catalogáveis apenas em pró e anti-Pombal, soube-me bem ler este ensaio isento e imparcial de Miguel Real. E nomeio-o para também compensar o facto de ainda não ter lido o seu romance "A Voz da Terra", que me dizem ser excelente.

escolhas de POSSIDÓNIO CACHAPA

"Bastardia", Hélia Correia (Relógio d"Água)
Discreta como um dia de chuva mansa, Hélia Correia vem lembrar-nos a existência das sereias e inevitabilidade de voltar aos lugares de onde partimos. E também que os melhores escritores são os menos divulgados.

"A Curva do Rio Sujo", Joca Reiners Terron (Palavra)
Terron pertence a uma nova geração de escritores que produz a sua obra em contexto urbano (S.Paulo, na ocorrência). Contudo, a memória do grande Brasil rural cola-se-lhe aos pés, como uma lama incómoda. Um dos muitos autores interessantes e desconhecidos deste lado do mar.

"In The Shadow of No Towers", Art Spiegelman (Viking, Penguin)
Do autor de "Maus", uma terrível paródia, em banda desenhada, ao 11 de Setembro. O mesmo humor dolorido da obra anterior, agora num gigantesco livro, de capa duríssima, onde se recria o trabalho de grandes autores do género, como George Harriman ou Winsor MacCay.

"Planisfério Pessoal", Gonçalo Cadilhe (Oficina do Livro)
Publicado no "Expresso", sob a forma de crónicas semanais, este conjunto de textos demonstra-nos 3 coisas: o mundo é uma fonte de descobertas e de contemplação, Portugal é ainda mais pequeno do que julga e que todos os homens diferentes são iguais. Profiláctico para quem acredita que o paraíso é para os lados de Cancun.

"Brazil", diversos autores (Lonely Planet)
Para sobreviver com o menor número de danos no corpo, à febre de viajar provocada pelo livro anterior. Muito útil quando o "ónibus"lotado nos larga no meio de uma terra nos confins da Amazónia...

escolhas de RICHARD ZIMLER

"As Velas Ardem Até ao Fim" de Sandor Márai (Dom Quixote)
"In Tasmania" de Nicholas Shakespeare
"Twilight of Love: Travels with Turgenev" de Robert Dessaix
"Forgotten Crimes: The Holocaust and People with Disabilities" de Suzanne E. Evans
"Deaf People in Hitler"s Europe" de Donna F. Ryan e John S. Schuchman

escolhas de RODRIGO GUEDES DE CARVALHO

"As perturbações do pupilo Torless", Robert Musil. Trad. João Barrento (D.Quixote)
A alegria de reencontrar um romance fundador.

"Deste viver aqui neste papel descripto", António Lobo Antunes (D.Quixote)
A corajosa publicação do despontar de um extraordinário escritor.

"A cortina", Milan Kundera (Asa)
Uma viagem de clarividência ao interior do "ofício do romance".

"Satanás", Mário Mendoza (Temas e Debates)
Uma dureza emocional servida por uma escrita seca ao osso.

"Os meus sentimentos", Dulce Maria Cardoso (Asa)
Risco assumido de um romance em ladainha, sufocante e depurado.

E ainda:

"Dispersos", José Cardoso Pires (D.Quixote)
"Paris nunca se acaba", Enrique Vila-Matas (Teorema)
"Naif.super.", Erlend Foe (Fenda)
"Um homem célebre", Machado de Assis (Cotovia)
"Num país livre", V.S.Naipaul (D.Quixote)

escolhas de ROSA LOBATO FARIA


"D. Quixote de La Mancha" , Miguel Cervantes, trad. Miguel Serras Pereira, Ilustrações de Salvador Dali (Publicações D. Quixote)
Uma edição maravilhosa de um livro eterno com ilustrações de um pintor imortal.


"Os Meus Sentimentos", Dulce Maria Cardoso (Edições ASA)
Esta é uma escritora que ombreia com os nossos maiores romancistas. Utiliza a língua e a estrutura narrativa com uma originalidade que a torna inconfundível.


"A Casa Quieta", Rodrigo Guedes de Carvalho (Publicações D. Quixote)
Uma magnífica surpresa. Um digno discípulo de Lobo Antunes já na plenitude de uma voz própria.


"Longe de Manaus", Francisco José Viegas (Edições Asa)
O que mais apreciei neste livro, para além do enredo policial inteligentemente urdido, foi a mestria com que demonstra as virtualidades da linguagem, enchendo o texto de música e sabores. Um hino à língua portuguesa, rica una e múltipla.


"O Sol dos Scorta", Laurent Gaudér (Edições Asa)
Escritor a um tempo vigoroso e musical numa saga telúrica onde o sol nos abrasa e a terra acorda as nossas raízes mais profundas. Belíssimo.


"Leonardo da Vinci" - 2 Vol. Desenhos e esboços e pintura completa (Editora Taschen)

escolhas de RUI TAVARES

1. "Os Emigrantes", de WG Sebald (ed. Teorema)
2. "O Mal no Pensamento Moderno", de Susan Neiman (ed. Gradiva)
3. "Dance dance dance", de Haruki Murakami (ed. Estação da Liberdade, de São Paulo, Brasil)
4. "Reflexões sobre a vaidade", de Matias Aires (ed. Estampa, já antiga)
5. "Paradise Lost", de John Milton (ed. MacMillan de 1885, comprada em alfarrabista)
Os pressupostos destes jogos literários sugerem que o participante tenha 1) fundos ilimitados para compra de novidades editoriais; e 2) dias com mais cinquenta horas. Há também uma certa obrigação democrática de privilegiar títulos a que o leitor tenha um acesso razoável, nomeadamente que estejam traduzidos para português e cujos exemplares se encontrem nas livrarias das maiores cidades do país. Aqui do meu lado, a porca torce o rabo enquanto tento cumprir com esta missão. Desde logo, porque a crise me forçou (tal como, estou certo, a muitos dos que me lêem) a moderar as minhas compras de novidades de catálogo com leituras na web e em bibliotecas. E em segundo lugar, porque a ideia de "novidade" para um historiador tem caprichos particulares que não se regem pela data que se encontra na ficha técnica ou se descobre pelo depósito legal. Juro que tentei jogar o jogo dos "melhores de 2005" sem falsear muito as regras. Vocês decidirão do resultado.
1. WG Sebald é um milagre da literatura; um autor que se poupou do público até à maturidade e surgiu já completamente formado no domínio do seu mundo. É dessa época "Os Emigrantes", um conjunto de quatro contos, publicado este ano pela Teorema. Em 2000 este foi o primeiro de Sebald que li, na sua versão inglesa (os originais são em alemão). A partir de metade do livro dei por mim subjugado; no fim já chamava nomes ao autor por pura inveja: "como é que este sacana consegue escrever tão bem?". Mas não só ele conseguia "Os Emigrantes", como em 2001 atingiu a grandeza literária de "Austerlitz" (já publicado em Portugal pela Teorema), e que para mim e muita gente continua a ser o melhor livro deste século de cinco anos já contados. Depois de publicar "Austerlitz", Sebald teve um enfarte enquanto conduzia a filha a casa e morreu no acidente de automóvel que se seguiu. Ao todo, entre 1990 e 2001, viveu apenas onze anos como escritor, mas fez um caminho da maior consistência e originalidade - pelo que me apetece dar uma bicada na opinião de Eduardo Pitta, que se referiu recentemente a Sebald como um autor a quem se presta vassalagem por moda literária. Pois eu prefiro participar desta unanimidade-sem-Pitta em torno de Sebald do que perder um autor destes por desconfiança das modas. Tenho dito.
2. O mesmo vale para o elogiadíssimo ensaio de Susan Neiman sobre "O Mal no Pensamento Moderno", publicado este ano pela Gradiva, uma "história alternativa da filosofia" cujo argumento muito bem cosido, que vai da Lisboa de 1755 à Auschwitz de 1945, se lê com muito proveito. Este foi um livro do meu 2005 também por razões pessoais: enquanto escrevia "O Pequeno Livro do Grande Terramoto", o texto audacioso de Neiman deu-me coragem para pegar em 1755 por pontas de que os historiadores normalmente se resguardam. Tenho-lhe esta dívida pública por pagar.
3. Sempre tive a fézada de que aos livros de Haruki Murakami assentaria especialmente bem o português de São Paulo, não só por esta ser a única metrópole lusófona da divisão de Tóquio, onde se passam muitos dos romances murakamianos, mas também por ser esta a cidade onde vive a maior comunidade de japoneses fora do Japão. Em 2005 uma editora sedeada no bairro japonês-paulista da Liberdade publicou um dos melhores de Murakami, "Dance dance dance", em tradução de Lica Hashimoto e Neide Hissae Nagae. Talvez melhor ainda é "Caçando Carneiros", praticamente a primeira parte de "Dance dance dance", que já tinha sido publicado pela mesma editora - Estação Liberdade - em 2001. Recupero "Dance dance dance" para esta lista somente para espicaçar as editoras portuguesas, que após um ímpeto inicial de dois títulos assim mais para o levezinho não voltaram a publicar Murakami, nem nunca o traduziram do original apesar de haver quem o possa fazer. Na verdade, o meu Murakami do ano foi a série de entrevistas às vítimas e autores dos ataques de gás sarin que há dez anos lançaram o pânico e a morte no metro de Tóquio. Chama-se "Underground. The Tokyo gas attacks and the japanese psyche". As entrevistas aos membros da seita religiosa que planeou os ataques produzem no leitor uma espécie de efeito magnético, viciante e assustador. No que ao terrorismo, à religião e ao mal diz respeito, temos aqui mais sumo do que em todos os neoconservadores nacionais e estrangeiros espremidos juntos.
4 e 5. Para os últimos dois títulos decidi esquecer as novidades de catálogo e assinalar os dois livros que mais novos me pareceram, nas ideias e na linguagem, apesar de nos chegarem do século XVIII e XVII, respectivamente. Este foi o ano em que foi concedido mergulhar a fundo nas "Reflexões sobre a vaidade", de Matias Aires - numa edição pequenina e antiga, da Estampa, que agora tenho quase sempre no bolso do casaco - e no "Paradise Lost" de John Milton, que leio antes de dormir. Uma das minhas decisões de ano novo passa por estes dois livros, mas é segredo.

escolhas de RUI VIEIRA

Os livros 2005 que mais espaço ainda me preenchem (sem qualquer ordem):
Nuno Júdice, "O Anjo da Tempestade", Dom Quixote (a pureza a a linearidade da escrita)
Juan Rufo, "O Galo de Ouro", Cavalo de Ferro (do pouco que escreveu, tudo que se possa ler é ... Juan Rulfo)
Enrique Vila-Matas, "Paris Nunca se Acaba", Teorema (estilo, conteúdo e um viajar no tempo cheio de imagens)
Cristina Silva, "Bela", Ambar (Florbela Espanca sempre na primeira pessoa)
Laurent Gaudé, "O Sol dos Scorta", Asa (musicalidade)

escolhas de RUi ANGELO ARAÚJO

"O Teu Rosto Amanhã - I. Febre e Lança", Javier Marías (Dom Quixote)
O problema maior desta obra de Javier Marías reside no facto de termos de esperar tanto tempo até deitar a mão ao segundo volume (ainda não editado em Portugal) e mais ainda ao terceiro, em que o autor estava a trabalhar até há pouco tempo, tanto quanto li. O protagonista de "O Teu Rosto Amanhã", detentor de um "dom", é mobilizado por um grupo misterioso, cuja origem remonta à segunda guerra mundial e aos serviços secretos britânicos. O seu trabalho é observar, camufladamente, pessoas submetidas a entrevistas. O objectivo é determinar como serão e agirão essas pessoas no futuro. Passando de forma erudita por aspectos da segunda guerra mundial e da guerra civil espanhola, "O Teu Rosto Amanhã" tem características de romance de espionagem. Mas o interesse maior reside na originalidade do tema proposto (a relação das pessoas com a verdade e a capacidade de prever comportamentos futuros a partir da compreensão do seu carácter actual) e na singular relação que une os dois protagonistas deste primeiro volume.

"Jerusalém", Gonçalo M. Tavares (Caminho)
Em "A Vida e o Tempo de Michael K.", de J. M. Coetzee, a ausência de referências temporais ou geográficas leva-nos a concentrar-nos na idiossincrasia das personagens. O único que temos de certo é que a civilização, seja ela qual for, vive dias de guerra, de caos, de decadência. Um cenário que serve para realçar a condição humana, para extremar as condições ambientais, para isolar o Homem de um meio e de uma sociedade específicas, como se faz às células no microscópio. Os "livros pretos" de Gonçalo M. Tavares constituem uma mesma experiência laboratorial. Este "Jerusalém", o terceiro da série, deixou a guerra na sua forma vivida e remeteu-a para um estudo fabuloso. Mas manteve as suas personagens afastadas da contaminação de uma sociedade identificável. Elas não fazem parte de um estudo sociológico que tem "uma" nação e "um" tempo como influências fundamentais. É a sua condição de seres humanos, com o seu cabaz próprio de sentimentos, fobias, desejos, caprichos e ódios, que importa à história - e à analise. Mas e se a existências assim tão particulares adicionarmos ainda a individualização e a marginalidade que a doença (física ou psicológica) concede?
Gonçalo M. Tavares - o homem que escreve (cria) mais aforismos por parágrafo de toda a literatura portuguesa - é o autor mais original e seguro das novas gerações.


"A Linha da Beleza", Alan Hollinghurst (Asa)

"A Linha da Beleza" retrata a ascensão e queda de Nick Guest, um jovem de classe média que, por um período alargado de tempo, passa a habitar a casa do seu amigo e colega da faculdade Toby, membro de uma família aristocrática e filho de um deputado. Mas o tema central do livro é a alta sociedade londrina dos anos de Margaret Thatcher, com os seus vários vícios (dinheiro, sexo, droga e poder), e o lugar da homossexualidade nela. O que torna mais original e interessante este texto (vencedor do Man Booker Prize em 2004) é exactamente o facto de a visita guiada à elite do poder e ao seu amoral estilo de vida ser feita pela mão de um homossexual, implicando isso um enfoque diferente do comum e uma entrada mais profunda num domínio sensorial que usualmente é apenas aflorado.

"Longe de Manaus", de Francisco José Viegas (Asa)
O detective Jaime Ramos, protagonista de Francisco José Viegas, tem todos os clichés dos inspectores dos filmes policiais - mas isso não me chateou. Jaime Ramos é, e isso não tem mal nenhum, um clássico inspector policial - ao serviço da PJ do Porto. Tem o seu cadáver, o seu adjunto, a sua namorada - que lhe permite um certo celibato de longa idade -, os seus charutos, os seus conhecimentos (sim, também na morgue). Mas "Longe de Manaus" vai, efectivamente, muito mais longe do que uma bem esgalhada história detectivesca. O livro tem "a vida" do morto, cujo rasto ténue obriga a percorrer várias localizações, de África ao Brasil. Mas também tem uma encantadora história paralela em S. Paulo, a de Daniela e Helena, duas amigas a viver uma relação erótica em evolução. E tem um memorável encontro de "irmãos", Portugal e o Brasil, o inspector Jaime Ramos e o delegado Osmar Santos, a quem o português se junta em Manaus no âmbito da sua investigação. Osmar Santos é a imagem do Brasil, descontraído, alegre, espirituoso, sensual, enigmático e com um peculiar cinismo, que joga bem com o de Ramos. O período que o detective Ramos passa em Manaus, contracenando com aquela personagem, com Educandos, um bairro pobre da cidade de Manaus, e com o vasto rio já valia o preço do livro. Viegas arrisca ainda a alternância entre o português do Brasil e o português de cá - o que dá um valor acrescentado ao texto.

"Sábado", Ian McEwan (Gradiva)
Se McEwan alguma vez mereceu o Booker, este "Sábado" seria o livro - muito acima de "Amesterdão".

"Aquilo Que Eu Amava", Siri Hustvedt (Asa)

"Longe da Aldeia", Rui Pires Cabral (Averno)

escolhas de VASCO GRAÇA MOURA

1. "Ilíada", trad. de Frederico Lourenço (Cotovia)
2. "Os sonetos de Tiago Veiga", de Mário Cláudio (Asa)
3. "Álvaro Cunhal", vol. III, de José Pacheco Pereira (Temas e Debates)
4. "Os poemas" de Konstandinos Kavafis, trad. J. M. Magalhães e Nikos Pratisinis (Relógio d"Água)
5. "1755" (os três volumes da FLAD/ PÚBLICO).
6. "Os pré-rafaelitas", antologia poética, trad. Helena Barbas (Assírio & Alvim)

Escolhas de VASCO PULIDO VALENTE

1. O meu livro do ano foi "The Fall of Rome and the end of civilization" de Bryan Ward-Perkins (Oxford University Press). Este livro tem um passado interessante. Os sábios de Bruxelas resolveram promover uma história oficial da "Europa". Nessa história, evidentemente, não se podia falar de "bárbaros" (germânicos, como é sabido), nem insinuar que a "invasão" dos ditos tinha sido uma absoluta catástrofe. Pelo contrário, para não ofender ninguém e mostrar que a União germinava já quando o Império caiu, era preciso transformar a "invasão" da memória colectiva e da literatura clássica numa espécie de "fusão" a benefício mútuo, gradual e quase pacífica. "The fall of the Roman Empire" de Peter Heather (MacMillan), por exemplo, serve discretamente esse propósito.
Mas, com certeza irritado com o eurofilismo pago por Bruxelas, o arqueólogo Bryan Ward-Perkins demonstrou em 139 páginas de evidência "dura" e de um argumento arrasador que a queda de Roma não foi um pic-nic franco-germânico à moda antiga: foi, de facto, "o fim da civilização". Não devo aqui entrar em pormenores. Basta dizer que até ao século IV existia em todo o território do Império uma autêntica economia "globalizada": ou seja, um sistema de produção e distribuição, sofisticado e "monetarizado", que permitia vender os produtos da Síria em Itália ou em Inglaterra, ou os produtos da Grécia e da Espanha em Cartago ou no Egipto. O fim da autoridade universal de Roma e a insegurança e o caos que a seguir vieram acabaram com este mundo. Nove décimos da "Europa" regrediram mil anos para o princípio da Idade do Ferro e levaram mil anos a recuperar. O inimaginável acontece.
2. Um germânico famoso achava que o futuro da raça não estava no sul e no sudeste, mas claramente no leste: uma ideia que trouxe à Europa inteira uma nova catástrofe. Falo de Hitler, como se calculará. Em 1995, a bibliografia sobre Hitler e o nazismo tinha 37.000 "entradas". Calculo que hoje terá mais 15 ou 20.000. Nenhum historiador a pode, mesmo superficialmente, conhecer e os livros de síntese, como a célebre biografia de Ian Kershaw, em geral não vão longe. As coisas mudaram com Richard Evans. Transparentemente influenciado pelo ensaio "seminal" de Michael Burleigh, "The Third Reich, A New History" (MacMillan), Evans até certo ponto consegue fazer compreender a Alemanha nazi. O primeiro volume da sua trilogia ("The Coming of the Third Reich", Allen Lane, Penguin Books) foi publicado em 2003. Saiu este ano o segundo "The Third Reich in Power" (Allen Lane, Penguin Books), que pela primeira vez descreve com precisão e clareza o caminho de um bando de aventureiros de Munique para o poder total e para o Estado assassino do Fuhrer. Sintoma do paroquialismo português, ninguém por cá se interessou pelo livro.
3. À parte o que apareceu em 2005, a grande descoberta do ano foram, para mim, as "Mémoires de la comtesse de Boigne", do reinado de Luís XVI a 1848 (Mercure de France). Carlota Leonor Luísa Adelaide d"Osmond (na intimidade, Adèle) nasceu em Versailles em Fevereiro de 1781 e morreu em Paris em Maio de 1866. Pertencia à mais velha e alta aristocracia de França. Aos cinco anos era mimada por Maria Antonieta e passou depois, miraculosamente, pela revolução, pela emigração, pelo Império, pela monarquia restaurada e pela monarquia de Luís Filipe, sempre no pináculo da "sociedade", que lhe competia por nascimento e por uma esmagadora inteligência. Irmã, cunhada, sobrinha, prima e tia da Europa inteira, conhecia os poderosos como conhecia Constant e Chateaubriand ou Lady Hamilton e Madame de Récamier. Mas nada disso importa muito.
Sendo uma escritora, Adèle sabia que a sua vida só seria interessante, se a contasse bem. Sem uma palavra indiscreta (que naturalmente considerava indigna dela) ou o mais leve vestígio de egocentrismo "moderno" (que, suponho, deixava aos criados), mas com observação, perspicácia, simpatia, sensibilidade, elegância e lucidez, Madame de Boigne reconstrói a tragédia de um século. O prefaciador da edição de 1999 diz que ela serviu de modelo à Madame de Villeparisis de Proust. Não subscrevo. Madame de Boigne serviu simplesmente de modelo a Proust, que não é concebível sem ela."