17.10.05

Ainda Hélia Correia no Diário de Notícias

Há algo de fantástico nos seus livros, qualquer coisa de Raul Brandão...

Não há uma filiação consciente em Brandão, nem directa nem remota, mas os universos literários coincidem de algum modo. Aquilino tem um conto semelhante no enredo a Montedemo, Andam Faunos pelos Bosques. Com ele não sinto afinidades nenhumas.

A ideia de um destino cego que pode destruir percorre a sua obra. É a voz da poesia e do teatro?

Talvez seja a Grécia em mim. Há tentativas múltiplas de a entender à luz da nossa lógica e ela escapa- -se-lhe. É isso que estimula o meu convívio com os gregos todos os dias, algo da ordem do desejo.

A tragédia repete-nos que o domínio da razão, da ordem, da justiça é limitado. É irreparável, impiedosa...

E eu tive uma educação positivista. Cresci com a esperança de que o mundo pudesse fazer sentido, de que os actos generosos tivessem sempre as mesmas consequências, de que a justiça funcionasse como bem absoluto. Para a criança que fui, o fatalismo, o inevitável, a pequenez provinham dos universos sociais, religiosos, analfabetos. O sentido trágico do mundo caiu sobre mim quando eu já não tinha protecção, a não ser a da cultura grega. Foi ela que me ajudou a aceitar o carácter cego do destino humano por meio da única solução possível, a beleza da criação.

A sua escrita é atravessada pelo que as palavras não cobrem. Sente-o?

Sinto a força do não-dito. Um texto faz-se de música, tecido que está sempre a ser puxado por duas energias, a da palavra e a do silêncio. O texto não é uma coisa nem outra. Por vezes, as palavras também são abusivas, há coisas a salvo delas.

Um pouco como no amor?

O não-dito é o mais eloquente no amor, que se move no território do inominável, do tabu, do sagrado. As palavras são adornos, dispensáveis, provocam disputas de soberania. Dão para fazer uns belos poemas... Mas eu sou inapta para lidar com a realidade.

Que lhe trouxe a sua mais bela personagem, Lillias Fraser?

Ela própria. Lillias é uma criatura que eu amo. Trouxe-me outra prenda muito bonita porque tem uma força de vida tal que já passou para dentro de outra ficção, o romance de Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, inspirado na vida da marquesa de Alorna.

Há uma cintilância nos seus livros que provém de um universo primitivo onde se abrigam as bruxas...

Que são seres não do caos, mas da desordem. Hoje há senhoras que dão consultas e que nada têm a ver com as minhas bruxas provindas do imaginário rural ainda muito nítido quando eu era criança. Nas minhas bruxas, a palavra não é solta, mas poderosa.

A sua obra reúne ainda a fuga, a transgressão, a loucura...

Tudo isso é o mesmo. Não me refiro a nenhum psicologismo na minha escrita.. A literatura não se sente bem no mundo de que dispomos e a que chegámos.

Realidade e ficção digladiando-se?

Isso é dar muita importância à realidade...

Mas ela existe, dá alegria e dói...

A realidade e as palavras são criação dos homens. Se eu tomar o partido da palavra, não estou a menosprezar o ser humano.

Escrever é o quê?

Criar e obedecer às palavras.

E estas obedecem a quê?

À sua música. São gatos. Tenho a submissão às palavras e aos gatos.

Escrever é uma fatalidade?

Uma tirania, uma bela servidão.

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