4.11.05

Pedro Mexia sobre Alexandre O'Neill

Aqui se conclui o texto de Pedro Mexia no Diário de Notícias:

"A variedade é a alma desta recolha. Há alguns poemas visuais (os únicos já editados em livro). Há letras de fado. Há gazetilhas políticas. Há prosas que passam a verso e versos que passam a prosa. Há pastiches e imitações, que servem ao virtuoso O'Neill como diálogos esperados e inesperados com a literatura portuguesa moderna. Um núcleo importante contém os poemas baseados em (ou escritos como se fossem de) Artur Corvelo, o pateta deslumbrado que Eça desenhou no romance póstumo A Capital (uma piada acrescida, pois estes poemas apareceram no vespertino A Capital). É uma poesia solene, artificiosa e gozona, um exercício poético que é também uma cooptação da crítica social queiroziana.

Outros textos são mais típicos do cânone alexandrino. O'Neill é excelente no poema urbano e deambulante que capta uma situação ou apenas um flagrante de uma situação e faz disso motivo poético. O acontecimento ocasional e sem significado aparente é mesmo o âmbito temático que O'Neill (céptico face aos Grandes Temas) prefere. Daí os poemas sobre os velhos (uma série notável que conhecemos doutros livros), os dichotes aforísticos, o poema sobre os filmes sexualmente explícitos (que mistura sexo e política e jogo verbal) ou mesmo o epitáfio de Elvis.

Os poemas são ao mesmo tempo experimentais e quotidianos, e revelam (numa leitura mais atenta) um cunho moralista algo paradoxal num antimoralista encartado. O tom às vezes é prosaico, outras vezes absurdo, outras obscuro. Uma coisa O'Neill nunca é um poeta umbiguista. Mesmo porque (como ele diz num poema) o umbigo está cheio de cotão. E até o cotão parece um tema mais interessante que o umbigo.

Alguns destes poemas são, reconheçamos, menoríssimos, curiosidades ou quase piadas rabiscadas num guardanapo. Outros, nomeadamente os políticos, têm mais picante que mérito. É curioso como O'Neill mantém uma ironia de resistência mesmo em clima de (titubeante) normalidade democrática. Um clima que também antecipa, de modo patusco, a inevitável chatice democrática "À esquerda da minoria da direita a maioria / do centro espia a minoria / da maioria de esquerda / pronta a somar-se a ela / para a minimizar / numa centrista maioria / que a esquerda esquerda não deixa (...)" (pág. 81). Ausentes ou quase desta colectânea, apenas os poemas amorosos, esses que estabelecem o poeta em terreno surrealista propriamente dito.

Muitos destes salvados nem poemas são são mais frases, flashes, fragmentos, miniaturas. Isso justifica que não tenham sido recolhidos em volume (individualmente) pelo autor, mas não impede que vistos no seu conjunto tenham algum interesse. Aqui, como sempre, o virtuoso O'Neill usa diversos processos (trocadilhos, assonâncias, neologismos, aglutinações, jogos fonéticos) que sirvam o seu propósito lúdico. E qual é esse propósito? Como escreve Fernando Cabral Martins no posfácio, ao poeta interessava antes de mais a materialidade das coisas como são e uma retórica de invenção formal que usa muitas vezes mecanismos básicos como o coloquialismo. E há ainda uma persistente desilusão, quase sempre revestida de ironia ou zombaria. Cabral Martins lembra que existe uma linha fina entre os vários realismos e que, sobre essa linha, caminhou, todo lampeiro, o nosso Alexandre "Pode tentar-se, a seu respeito, a designação de 'surrealista experimental', o que tem a vantagem de o colocar no centro do processo poético das duas décadas de 50 e 60, que nele se fundem e transformam. Sobretudo se aceitarmos que há uma vocação realista que se encontra implicada no culto surrealista da surpresa, pelo menos na Lisboa de meados do século XX. O 'neo' e o 'sur' são prefixos que então, por vezes, se cruzam ou se tocam" (pág. 123).

É o que vemos num dos famosos inventários surrealistas, de cunho lisboeta e que vale a pena citar integralmente "o ar milonga do lisboeta / o ar mastronço do lisboeta / o ar activo do lisboeta / o ar coitado filha do lisboeta / o ar cabotino do lisboeta / o ar reservado do lisboeta / o ar dia oito do lisboeta / o ar missa da uma do lisboeta / o ar campdòrique do lisboeta / o ar queixudo do lisboeta / o ar ramona do lisboeta / o ar bichona do lisboeta / o ar pasma do lisboeta / o ar barrigatesta do lisboeta / o ar último olhar de jesus do lisboeta / o ar vilas boas do lisboeta / o ar estoril do lisboeta / o ar em princípio vou do lisboeta / o ar eu depois confirmo do lisboeta / o ar catarino do lisboeta / o ar daniel do lisboeta / o ar terilene do lisboeta / o ar jaguar do lisboeta / o ar poupar do lisboeta / o ar gastar do lisboeta / o ar solmar do lisboeta / o ar morrinhanha do lisboeta / o ar seminarista do lisboeta / o ar boçal do lisboeta / o ar servil do lisboeta / o ar por aqui me sirvo do lisboeta / o ar eu cá não vi nada do lisboeta / o ar portagem do lisboeta / o ar esnègabar do lisboeta / a ar jardim cinema do lisboeta / o ar crise de teatro do lisboeta / o ar é natal é natal do lisboeta / o ar estufa fria do lisboeta / o ar padre cruz do lisboeta / o ar mártires do lisboeta / o ar conjuntura do lisboeta / o ar ultramar do lisboeta / o ar tecnolírico do lisboeta / o ar você do lisboeta / o ar donamélia do lisboeta / o ar alentejano do lisboeta / o ar chico esperto do lisboeta / o ar sector um do lisboeta / o ar monsanto do lisboeta / o ar transístor do lisboeta / o ar trombudo do lisboeta / o ar lisbonudo do lisboeta / o ar matraquilhos do lisboeta / o ar agenda do lar do lisboeta / o ar et pluribus unum do lisboeta" (pág. 46). A palavra (irónica) descreve (é neo) mas também inventa e ultrapassa (é sur).

O'Neill joga com a herança de Álvaro de Campos (em elisão), com as correntes do seu tempo, com as notícias de jornal, com a vidinha, com todo o tipo de materiais (literatos ou nada literatos) e escreve poemas do seu tempo que são verdadeiramente originais e, nalguns momentos, marcantes. Se. como diz o ensaísta já citado, os poemas dos anos 70 marcam o "apogeu estilístico" de O'Neill, eles servem mais para completar as Poesias Completas (2000) do que como capítulo autónomo. Alexandre O'Neill é um dos nossos grandes modernos porque se empenhou numa contínua lição de coisas. Coisas que são os poemas. Coisas que, como escreveu, usamos, canhestros, como se fossem portas. De tal modo que ficamos sempre com a maçaneta na mão."

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