26.12.05

Entrevista a Fernando Echevarría

"A poesia talvez seja sempre dádiva

Poeta publica Obra Inacabada pelos 50 anos de vida literária. E fala sobre prémio de Cultura Manuel Antunes, atribuído pela Igreja Católica.
Por António Marujo

O poeta Fernando Echevarria prepara-se para publicar uma colectânea de toda a poesia, assinalando assim os 50 anos da sua vida literária. Com o título Obra Inacabada, o livro assinala o 50º aniversário da publicação de Entre Dois Anjos, publicado em 1956. Ao mesmo tempo, o poeta prepara a edição de Epifanias, um novo livro de poemas, o primeiro inédito depois de Introdução à Poesia, de 2001. Tudo na Afrontamento, a sua editora.
Echevarria recebeu há dias a primeira edição do Prémio de Cultura Padre Manuel Antunes, instituído pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (SNPC). Este organismo da Igreja Católica, cujo director é o padre José Tolentino Mendonça, considerou, na sua decisão, que Echevarría "não persegue uma realidade determinada pelo sensorial, mas aquela realidade que é o princípio de toda a realidade". Nos livros de Echevarria insinua-se um sentido da "dádiva, que nos mergulha no mais extenso silêncio - o silêncio aberto de Deus", considerou ainda o júri.
O poeta tinha sido já distinguido com os prémios de poesia do Pen Clube (1981 e 1998) e da Associação Portuguesa de Escritores (1991) e com os prémios Eça de Queiroz (1995), António Ramos Rosa (1998) e Luís Miguel Nava (1999).
Respondendo por correio electrónico, a propósito do prémio do SNPC, Fernando Echevarria diz que escreve fazendo "uma espécie de exercício espiritual". O poeta, que esteve exilado na Argélia durante o Estado Novo, recorda também essa experiência com pessoas "que andam ainda por aí" para revelar o seu desencanto com formas actuais de fazer política, confessando que, apesar de instado a entrar na vida partidária, preferiu não o fazer.
PÚBLICO - Como recebeu este prémio, de uma estrutura católica, que pretende destacar um percurso que tome "valores da experiência cristã como sedimento e energia para uma criação cultural"?
FERNANDO ECHEVARRIA - Não escondi nunca que sou católico. Não posso recebê-lo sem o sentimento de uma honra, com certeza imerecida, mas que destaca, por isso mesmo, a generosidade do júri que mo atribuiu. Se acrescentarmos o facto de o prémio levar o nome do padre Manuel Antunes que conheci e admirei e, mais ainda, impôs, em 1956, alguns poemas do poeta incipiente que eu era então ao primeiro número da Graal, compreender-se-á facilmente quanto mais grato me é hoje ver o meu nome associado ao desse grande intelectual e professor.
O júri referiu que a sua poesia fala do "silêncio aberto de Deus" e de uma realidade para lá do real. A sua poesia tem uma dimensão transcendente ou está mais próxima da sua experiência política?
Preferiria chamar cívica, e não política, a experiência que refere. Tratava-se, na altura, de um dever decorrente do facto de ser católico o que surpreendia aqueloutros que já na altura, embora opostos ao regime vigente, faziam da política sua actividade exclusiva. Não eram todos, evidentemente. Mas enquanto muitos, na Argélia, por exemplo, vivíamos do nosso trabalho, nem sempre convenientemente remunerado, havia os que viviam de dinheiros vindos não se sabe donde.
A experiência não pode, pois, limitar-se a essa circunstância, ainda que ela não se possa separar da de um cristão situado no mundo daqueles anos de que não guardo saudades - a não ser de factos que nada têm a ver com a política. Os actores dela, que andam ainda por aí, nem então nem depois deram conta do recado. O antigo regime, que não tolerava oposições, era, é claro, o grande responsável por isso. Hoje as coisas mudaram sem melhorarem grande coisa e os mais aptos não são já os velhos de então.
Antes disso, há a dizer que, instaurada a democracia após a nova ditadura que a cada lei aprovada achava que ela já estava ultrapassada, recusei-me a fazer carreira nessa actividade, apesar de instado.
Passemos à experiência do "silêncio aberto de Deus" e da transcendência. Espero que apareçam no horizonte do que vou escrevendo, isso sim. Tenho consciência de não ser o único, nem o melhor responsável por isso. Posso dizer, no entanto, com a humildade que se impõe, que considero o meu trabalho como uma espécie de exercício espiritual e de auscultação. O resto virá talvez por acréscimo, se Deus quiser.
Uma das críticas ao seu último livro dizia que a sua poesia como que conduz o leitor para a dimensão do poema como dádiva. Para onde quer conduzir o leitor? E que lhe quer dar?
Um dos livros de Miguel Torga leva o título feliz de Nihil Sibi. O que quer dizer que a poesia talvez seja sempre dádiva. E o essencial da dádiva está no dom pronto a dar-se de contínuo. No caso do poema, a dádiva aparece na leitura. Até então o livro não passa de uma real potencialidade à espera do leitor a vir. Potencialidade, contudo, superabundante e implícita que não pede senão vir a ser explicitada. Nessa passagem do implícito ao explícito é que se pode apreender a natureza singular e silenciosa da dádiva.
Quem melhor poderia falar-nos disso seria o leitor. Nós, os que escrevemos e somos igualmente leitores, nossos e uns dos outros, sabemos também alguma coisa. Uma delas é que, para que possamos beneficiar dessa dádiva, será preciso, de certa maneira, merecê-la. Devemos dispor-nos a essa leitura. Preparar-nos a esse silêncio prévio que nos nutrirá de um silêncio maior e mais exigente."

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