26.12.05

Fernando Ilharco, "As boas e as más notícias"

"Em qualquer altura do ano e em qualquer dia,as boas notícias são a publicidade e as más notícias são o telejornal. Em termos estruturais à sociedade que somos, é a forma como participamos em cada um daqueles universos simbólicos que determina quem somos
Embora seja correcto que, à excepção do conflito da Jugoslávia, nunca houve uma guerra entre países com McDonalds, que talvez mais do que a democracia é a sociedade de consumo que evita as revoluções, e, como Max Weber escreveu, que a questão central das comunidades é a legitimação das elites e o afastamento do poder da generalidade da população, não deixa de ser indubitável qualquer coisa de extraordinário na textura do consumo cultural que envolve uma parte da população do mundo Ocidental e assim também da população portuguesa. Ao olhar-se as milhares de pessoas que enchem as livrarias, as lojas de música, de DVDs, de informática e de electrónica, não se deixa de intuir-se os milhares de universos imaginados e imaginários, povoados de histórias, de melodias, de valores e de enigmas, todos eles, hoje, mais reais do que o que nos ensinaram ser a realidade. Hoje o real é o hiper-real. Para todos os efeitos, a quantidade de produtos e de serviços culturais é hoje infinita; e a sua qualidade, em geral e em termos massificados, deixa a boca aberta a multidões inteiras. O que enche as nossas vidas, os livros, os discos, os filmes, os milhares de aparelhos de electrónica tem evoluído imensamente nos últimos anos; embora, claro, ao ser uma plastificação, uma substituição, e ao se experimentar como mais real que a realidade, a digitalização tem tido como consequência a subida dos preços e da apetência das elites por tecnologias não digitais, isto é, mais reais. A evolução deste verdadeiro novo sector de actividade, a gigantesca área da informação e comunicação, sucessora dos sectores dos serviços e da velha indústria, e que nos chega como oferta cultural, tem feito sentir-se ao longo de três eixos: o preço - consequência do quadro competitivo global em que assentam as indústrias da informação, os preços evoluem em tendência estrutural de queda; a qualidade - a digitalização, como que purificando aquilo que toca de interferências da realidade, tem permitido subidas apreciáveis na qualidade da generalidade dos produtos e serviços; e finalmente, resultado dos dois movimentos anteriores, entre outros factores, a quantidade de produtos e de serviços do novo sector da informação e comunicação não pára de subir. É este o quadro que nos envolve. Mais do que cercados, estamos genuinamente mergulhados numa nova realidade, mas tão real como as que a precederam porque a realidade humana sempre foi simbólica. Não foi apenas Corto Maltese que viveu num mundo imaginado, de partidas e de chegadas, mas fomos sempre todos nós que o fizemos. Esta sociedade da abundância, filmada por Wenders e cantada por Cohen, é sentida no Ocidente e talvez com particular acuidade em Portugal, membro recente desta história, como uma oferta exagerada, desproporcionada e por isso, como refere Baudrillard, constitutiva de uma divida que nunca poderá ser paga. Seriam necessários milhares de Live 8.
O consumo de bens culturais é hoje um estilo de vida, os quais sempre determinaram o valor, o uso e o simbolismo das coisas e das ideias. O imaginário hiper-real é hoje a ontologia dominante. Tão irreal quanto os mundos que levantaram do chão as mãos do homem, que lhe voltaram a face para o céu, que lhe deram um trabalho, um futuro e uma dignidade, o simulacro hiper-real é hoje real porque a realidade sempre foi virtual, por isso, livre e o homem responsável pelas suas acções, pelo mundo que abre nas suas escolhas. No universo simbólico digital, as histórias, os jogos, as músicas referem-se uns aos outros. Como se de uma nave espacial se tratasse, a hiper-realidade descolou da realidade tal como antes a vivíamos, substitui-se ao mundo que a precedeu. Uma geração depois - em Portugal definitivamente no início deste século -, o universo imaginário da TV cabo, da Internet, dos telemóveis, dos DVD, das FNAC, Colombos, Corte Inglês, etc. é a verdadeira natureza, é o que as coisas são, o contexto no âmbito do qual surge o que surge e conta o que conta, isto é, emerge o próprio mundo.
Em rigor, ninguém sabe à volta do quê e de quem gira o imenso poder de sedução que se experimenta na sociedade contemporânea da abundância. A sua lógica, no entanto, é cristalina. Quer nos anúncios quer nas notícias, os critérios de participação e de exclusão são claros. Em momentos cerimoniais como o das compras em massa que socialmente se impõe nesta quadra, percebe-se que no mundo simbólico digital, na realidade imaterial em que vivemos, a nossa história é contada todos os dias na televisão: se tudo correr bem, se rolarmos na grande roda da abundância, as boas noticias, ou seja, a publicidade, é o que nos é dirigido; caso contrário, um dia, sem querer, aparecemos no telejornal. Na FNAC ou no Media Markt, em qualquer gigantesca casa de livros, filmes e música das milhares que existem pelo mundo Ocidental, compreende-se como hoje as boas noticias são a publicidade e as más noticias o telejornal. Ao princípio da noite, depois do telejornal, entretanto transformado num dos mais violentos programas de televisão, enquanto o écrã vai passando as cotações das bolsas de valores, vamos experimentando uma espécie de desaceleração, de aterragem no outro lado da realidade, num espaço de menos urgência e de mais tempo. O boletim meteorológico, que se segue, consubstancia a alteração final. Falando sobre o futuro - sempre o tema que a todos preocupa - o meteorologista diz-nos que amanhã o tempo não vai estar mau... - é tudo o que precisávamos saber. A vida continua, atrás de nós fechou-se o quarto de saída das más notícias e as boas notícias vêm aí: a publicidade, a vida como cinema, as soluções sem problemas, a juventude eterna. É este novo mundo hiper-real, global, que hoje se nos impõe, no qual é preciso sobreviver; paradoxalmente, deixando de sonhar."

0 Comments:

Post a Comment

<< Home