1.12.05

Fernando Pessoa também no "Público"

Texto de Kathleen Gomes: "Fernando Pessoa morreu há 70 anos, Fernando Pessoa vai ter uma nova vida. A efeméride é significativa, porque, segundo a legislação, a obra de um autor entra no domínio público passados 70 anos sobre a sua morte. Traduzindo: Pessoa é, a partir de agora, de todos e são várias as editoras que estão a preparar novas edições do poeta português mais idolatrado e traduzido em 36 países.

A exclusividade dos direitos autorais da sua obra coube, até agora, à editora Assírio & Alvim, e irá vigorar até final deste ano. A partir do início de 2006, são várias as edições que vão chegar às livrarias - e às bancas de jornais - com chancelas editoriais diferentes, da Relógio d"Água, que se prepara para publicar uma nova versão do Livro do Desassossego em Janeiro, à nova editora de Zita Seabra, Alêtheia, que anuncia uma edição anotada e comentada de Mensagem para Fevereiro ou Março. Outros projectos incluem uma vasta antologia de sete volumes, de poesia e prosa, coordenada pelo americano Richard Zenith, reconhecido tradutor e investigador pessoano, para o Círculo de Leitores, em conjunto com a Assírio & Alvim, no Outono de 2006, ou um volume antológico organizado por Eduardo Lourenço a convite da revista Visão.

A corrida a Pessoa já começou nos bastidores, portanto. O que é que o torna um autor tão apetecível? "Tem obras adoptadas no sistema de ensino, e isso é o mais apetecível para um editor", resume Zita Seabra, justiticando assim o facto de o primeiro título da sua editora ser a Mensagem, livro integrado nos programas de Português do ensino secundário.

O caso de Pessoa é sui generis porque não é a primeira vez que a sua obra entra no domínio público. Isso acontecera já em 1986, quando o prazo de protecção dos direitos de autor em Portugal era de 50 anos após a morte do autor. A Ática perdeu então os direitos exclusivos e, durante uma década, foram várias as editoras que o publicaram. Mas uma directiva comunitária de 1993 veio ampliar a vigência dos direitos de autor para 70 anos após a morte do autor e os herdeiros de Pessoa, representados pela sua sobrinha Manuela Nogueira, negociaram a reprivatização da obra com a Assírio & Alvim, então dirigida por Manuel Hermínio Monteiro. Esta opção foi objecto de polémica, tendo sido contestada por outras editoras que publicavam Pessoa.

Francisco Vale, editor da Relógio d"Água, lembra que teve de suspender as edições em curso - a Relógio d"Água, como as restantes editoras, podia manter no mercado os títulos já editados, mas não podia proceder a novas edições ou reedições. Vale chegou a editar um primeiro volume do Livro do Desassossego que não teve continuação porque a obra de Pessoa regressou ao domínio privado. Agora, encara a reentrada no domínio público como "uma boa notícia", e prepara-se para recuperar o tempo perdido, com um novo Livro do Desassossego, organizado por Teresa Sobral Cunha, e a reedição de Fausto, entre outros títulos a "anunciar no início do próximo ano".

Decifrar Pessoa

Enquanto detentora exclusiva dos direitos sobre a obra de Pessoa nos últimos oito anos, a Assírio & Alvim levou a cabo um ambicioso projecto de edição quase integral do autor, contando com uma equipa de prestigiados pessoanos liderada por Teresa Rita Lopes que restabeleceu os textos a partir dos manuscritos, muitas vezes com a inclusão de inéditos. Tarefa particularmente espinhosa no caso de Pessoa, dado que publicou muito pouco em vida e a maior parte do seu espólio - a célebre arca de 25 mil papéis comprada pelo Estado em 1979 e depositada na Biblioteca Nacional - é constituída por textos dispersos que o poeta não fixou numa forma acabada. Citando um exemplo, avançado por Richard Zenith, que integra a equipa associada à Assírio: "É um caos total, porque na mesma página pode haver um pedaço de um ensaio sobre a I Guerra Mundial, uma reflexão filosófica e poemas." Acresce a isto o facto de a caligrafia de Pessoa ser, por vezes, "extremamente hieroglífica". E, ainda, o facto de ter deixado muitas variantes de um mesmo poema. "O que é que se publica? A primeira versão? A segunda? A terceira?"

Com duas dezenas de títulos publicados, a Assírio não foi a única editora a publicar Pessoa nos últimos anos. Um outro grupo de investigadores académicos tem vindo a trabalhar paralelamente na releitura dos textos a partir dos originais, e a editá-los na Imprensa Nacional/Casa da Moeda (INCM). Em 1988, a Secretaria de Estado da Cultura criou a Equipa Pessoa com o objectivo de estudar o espólio e fazer edições críticas da obra completa do autor. Ivo Castro, professor da Faculdade de Letras de Lisboa e director da Equipa Pessoa, considera que os dois projectos editoriais são diferentes, uma vez que as edições da Assírio são "imediatamente amigáveis para o utilizador" e contêm um espaço reduzido de informações de natureza técnica, ao passo que as da INCM reconstituem todas as fases de interpretação e revisão de que o texto foi alvo. Ou seja: "A nossa edição destina-se a um público que queira ler de lápis na mão".

INCM edita Caeiro

As duas equipas, independentes uma da outra, prometem continuar a trabalhar. "O essencial está feito", diz Manuel Rosa, editor da Assírio & Alvim, que irá publicar, até ao início de 2006, três volumes da poesia ortónima de Pessoa. A INCM anuncia para a primeira metade do próximo ano um volume de poemas ruba"iyat (de inspiração persa) e um livro de ensaio sobre os temas do génio e da loucura, e, mais tarde, a poesia de Alberto Caeiro.

Ivo Castro saúda a entrada de Pessoa no domínio público "porque só com plena liberdade de publicação se faz a comparação entre o que é bom e o que não é". Segundo este investigador, os dez anos em que Pessoa foi público corresponderam à "fase mais enérgica, mais diversificada e mais livre da edição de Pessoa". "Todas as editoras devem estar com vontade de fazer alguma coisa", calcula João Rodrigues, da Dom Quixote, embora Pessoa não faça parte dos seus projectos editoriais para 2006. "Há falta de edições da sua obra para grande público, eventualmente gostaria de fazer algo nesse sentido, que trouxesse novos leitores", afirma. Premonitória, a última frase que Pessoa escreveu, no dia anterior à sua morte: "I know not what tomorrow will bring" ("Não sei o que o amanhã trará").
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