18.12.05

O Padre Manuel Antunes e Manuel de Brito, segundo Jorge Silva Melo

"Era para falar de Manuel Antunes, recomendar as obras que agora se editam, tanto quanto possível completas, em comemorações de ausência que até este fim de semana se celebram. Mas era também para dizer que a letra de Manuel Antunes nunca foi como a sua voz, a mais clara foi a sua palavra dita, a pausa, a suspensão, a repetição, a ênfase também gestual, aqueles seus gestos codificados e tão próprios. Procuro nalguns (tão poucos) livros que dele tenho (da velha Moraes, da Ática) e, se encontro neles um pensamento cuidado e atento, já nestes textos - muitas vezes de ocasião, prefácios, notas, com as obrigações formais em uso- não vejo o brilho heterodoxo do mestre extraordinário, extravagante, rigoroso, curioso, atentíssimo, o olhar maroto de quem acabou de ter uma ideia e a avança, provisória, aposta.
Os seus textos são bons textos. Mas o que era extraordinário naquelas suas aulas altamente formais, era a maneira como ele se libertava das obrigações, como ia de Eurípides a Sophia, como, estudantes muito jovens, éramos interceptados na curva exaltante de um pensamento sempre a fazer-se. Jesuíta, era nas aulas (que, em cristã e militante alegria, rompiam a lúgubre faculdade) que a sua palavra afiada, lenta, preciosa, fluía. Mais do que escritor, Manuel Antunes é um professor. E, mais do que o ensaio, a aula era o seu palco, quartas às 11 no Anfiteatro 1.
Tinha pensado falar de Manuel Antunes, mestre, quando fui apanhado pela morte de Manuel de Brito, o livreiro, o galerista que, durante esses mesmos anos de faculdade, eu frequentava, a quem comprei a inevitável "Paideia" de W. Jaeger, em castelhano, manual precioso para a Cultura Clássica, e o "Les Mots et les Choses" que Manuel Antunes nos revelou, estupefacto, ele - e nós, entusiasmados.
Manuel de Brito morreu agora. Também ele terá sido meu mestre, ensinou-me o gosto de mostrar, de editar, de importar livros, de fazer, de encontrar, de procurar o livro desejado, mestre em juntar pessoas, mestre de negócios (homem que em si concentrava a epopeia burguesa "no tempo em que a palavra era/ um conceito moral, vizinho da honra/ e irmão chegado do trabalho" nos estupendos versos do Armando Silva Carvalho), mestre dessa arte infindável que é a de se tornar o epicentro de tudo naqueles anos incertos, poesias, tudo o que pudesse ser, livros, traduções, pinturas, a casa cheia de gente, tantas ideias, que bonita a sua 111 (e o logo do Vespeira), fervilhante, e quando então chegavam novos (caríssimos!) Gallimard brancos.
Mestre erudito um, autodidacta o outro, tive a sorte de os ter, de os ouvir, ávidos eles e eu. O privilégio das horas mortas da conversa de corredor na faculdade ou na loja, de cotovelo apoiado ao balcão, quando ainda se fumava nas lojas. Foram-me abrindo o mundo - e com o abre-latas da conversa, às vezes a ironia, a anedota, a pequena inconfidência que nenhuma letra guardará, coisa mais séria, abriram com a acção, as noites de trabalho, a descoberta que a tinta não fixou, fundiram-se-me na vida.
E lembro-me de Manuel de Brito me falar de como, na Livraria Escolar Editora, a livraria por onde começou, naqueles anos depois da guerra, anos de Abelaira, diria, anos de desencantos e outras tantas teimosias, se reuniam os mestres de ciências que o tinham tomado como jovem protegido. E ele me falava desse Ferreira de Macedo, que nunca, é claro, conheci, do jovem Caraça, os matemáticos impulsionadores de tanta coisa, destemidos instigadores. E através de Brito, eles chegaram até mim e talvez, outra vez, agora a partir de mim que já sou quase sempre "o mais velho", estas conversas que não ouvi cheguem a outros, sem letra, pelo aperto de mão.
É a cultura oral a fazer-se, a desaguar nos dias.
A letra - e esta também não - nem sempre apanha as conversas, as aulas, não as prende, mas também elas não se vão com o vento, passam de boca em boca, vão-nos fazendo.
E há uma genealogia do pensamento que escapa ao livro, passa pelo gesto e fica no ar: a cultura oral ainda nos faz, com o riso, o exemplo, o sorriso que a letra não conhece.
E foi na conversa (activa, cada uma delas e a seu modo diverso) seja de Manuel Antunes, seja de Manuel de Brito que terá ficado, precioso, o ouro dos seus dias."

0 Comments:

Post a Comment

<< Home