3.12.05

"A pequenina colher", por Eduardo Prado Coelho

Aqui fica, pelo seu manifesto interesse didáctico

"Nesse fenómeno das letras portuguesas que é a produção incansável de Gonçalo M. Tavares existem ciclos, e um deles, um dos mais curiosos e inesperados, chama-se "o bairro". Saíram anteriormente o senhor Valéry, o sr. Henri (trata-se de Henri Michaux, extraordinário poeta francês da segunda metade do século XX) o senhor Brecht, o senhor Juarroz. Acaba agora de lançar "O senhor Kraus" (referido a um jornalista alemão com um forte dimensão aforística e panfletária, Karl Kraus). E também "O senhor Calvino", ambos na editora Caminho.

Que têm em comum todas estes escritores? E que têm em comum os livros que sobre eles tem escrito Gonçalo M. Tavares? As personagens são descritas, não enquanto personagens reais, mas enquanto suportes de experiências do mundo e da linguagem, e das janelas que a linguagem abre ou fecha no mundo. São essas experiências que têm correlações com o universo físico e cultural desses escritores. Pode-se ler estes livros sem ter lido nada dos autores convocados. Alguma coisa se perde, é claro, mas não é exactamente o essencial. No caso de Kraus, por exemplo, não são muitos os que conhecem os seus textos.
E os livros, como são? Feitos de pequenos textos que irrompem no quotidiano para produzir um efeito de verdade. No "Senhor Calvino", Gonçalo M. Tavares explica: "Calvino sabia ainda que uma frase não tinha espaço suficiente para lá caber a verdade; esta não era uma coisa que se pudesse escrever ou soletrar, mas sim una coisa que acontecia. Como um terramoto ou um encontro casual numa esquina, com um velho amigo. A verdade era iletrada, sabia Calvino." Donde, a verdade é da ordem do acontecimento. E cada texto destes livros desenvolve-se na dimensão vertical (para utilizarmos uma palavra de Juarroz), para tentar o encontro casual com a verdade - não a verdade toda, mas uma cintilação de verdade. Estes livros são portanto produtos de uma verticalidade, sem nunca serem poemas (que é a forma "vertical" por excelência).
Note-se que todos eles partem de uma certa inocência das personagens, que de certo modo olham o mundo como se fosse a primeira vez. É ainda a questão metodológica da pequena colher: "Para treinar os músculos da paciência, o senhor Calvino colocava uma colher de café, pequenina, ao lado de uma pá gigante, pá utilizada habitualmente em obras de engenharia. A seguir, impunha a si próprio um objectivo inegociável: um monte de terra (50 quilos do mundo) para ser transportado do ponto A para o ponto B - pontos colocados a 15 metros de distância um do outro. A enorme pá ficava sempre ao lado, parada, mas visível. E Calvino utilizava a minúscula colher de café para executar a tarefa de transportar o monte de terra de um ponto para outro, segurando-a com todos os músculos disponíveis. Com a colher pequenina cada bocado mínimo de terra era como que acariciado pela curiosidade atenta do senhor Calvino."
Daí a conclusão: "Paciente, cumprindo a tarefa, sem desistir ou utilizar a pá, Calvino sentia estar a aprender várias coisas grandes com uma pequenina colher".
Outro ponto em comum: o gosto da lógica, do número, da medida, dos sistemas de metrificação e de gramática do mundo. Isso aproxima-o de um certo pensamento de língua inglesa, em particular, como é óbvio, de Lewis Carroll e Wittgenstein. Todos estas pessoas procuram que o mundo tenha uma ordem subjacente, mas acabam por descobrir que essa lógica é sempre outra, e de certo modo insensata. Mas apenas "insensata" porque escapa ao sentido com que nós estamos habituados a viver no mundo. Há um pôr entre parênteses esse sentido habitual e utilitário, que aproxima o trabalho de Gonçalo M. Tavares da fenomenologia. Daí resulta um timbre que faz que muitas destas páginas possam ser lidas ou ouvidas (para adormecer ou para comer a sopa) por crianças.
O propósito é modesto: a colher é pequena. E essa modéstia (que o afasta das grandes construções germânicas ou do barroco mental de muitos pensadores franceses) também o aproxima do mundo inglês. Por isso, "durante uma vida - pensou Calvino- fazer tudo parecia muito, e era incontável e por isso mesmo de impossível verificação. Se o não conseguisse, pelo menos tentaria fazer metade de tudo, o que para mais tinha a vantagem de ser um número exacto. Não faria pois tudo. Como projectavam alguns escritores jovens de mais, faria metade de tudo, decidira-o naquele momento."
Por fim, há uma questão essencial: Calvino (e recordemos que Italo Calvino criou uma personagem semelhante, o senhor Palomar) utiliza frases que não são nem verdade nem mentira, sem resvalar no entanto para o domínio de uma lógica do vago. Calvino teve ligações ao grupo que em França se designava de OULIPO, o que signicava "atelier literatura potencial". É na invenção do possível que esta literatura se situa, como talvez pudéssemos dizer de toda a literatura, mas no caso desta trata-se de um programa que se formula explicitamente. Gonçalo M. Tavares explica: "Calvino não tinha linguagem suficiente para passar um dia sem inventar (alguns chamavam a isso mentir). (...) É assim mesmo, mas ao contrário. Era esta a forma que Calvino utilizava preferencialmente para esclarecer as pessoas." "Donde, avança-se ao longo da verdade e da mentira, mas para chegar ao avesso, ao contrário de cada verdade e de cada mentira. Evitando o fundamentalismo da verdade: "era possível passar o dia inteiro a dizer mentiras, mas impossível passá-lo a dizer a verdade. Todas as relações pessoais, sociais e entre nações se desmoronariam.""
Estes livros são, como toda a obra de Gonçalo M. Tavares, fascinantes. Estamos perante a maior revelação das letras portuguesas dos últimos anos. Não muito português, nem na escrita, nem nos temas. Mais germânico na prosa de ficção, mais inglês nos livros do "Bairro" (embora sejam poucos os escritores de língua inglesa).
Mas Gonçalo M. Tavares aproxima-se tanto da dimensão enigmática das coisas que faz que o mais simples se possa tornar um enigma; "É simples e rápido de contar: o cão de um vizinho, mais precisamente o senhor D, cegou. Uma doença e a idade. O cão sempre vivera e passeara por ali, pelas redondezas, pelo meio dos sons, dos cheiros, daquele ar. O senhor Calvino ofereceu-se. Ao fim do dia ia buscar o cão cego e levava-o, de coleira, a passear pela cidade.""

0 Comments:

Post a Comment

<< Home