2.12.05

A literatura e a vida (1)

Pelo seu manifesto interesse didáctico, para aqui transcrevo o texto de Vasco Pulido Valente "Volta, princesa", parte integrante do Público de hoje:

"Este jornal publicou ontem um artigo sobre a mais venerável lenda política da minha geração: a lenda de Catarina Eufémia. Catarina Eufémia era uma camponesa do Baleizão, que foi morta a tiro, em 1954, durante uma greve, pelo tenente da GNR Carrajola. Segundo a ortodoxia do PC, Catarina estava grávida e grávida apareceu durante toda a ditadura e todo o PREC, em prosa, em verso, em desenho ou em gravura. Agora, um médico, que assistiu à autópsia, vem garantir que ela não estava, de facto, grávida. O que, evidentemente, não atenua o crime, mas dissolve o pouco que restava da história mítica do comunismo português. Para quem foi educado nessa história ou viveu no tempo em ninguém duvidava dela, esta revelação não deixa com certeza de ser melancólica. Até a santa do Baleizão, a imagem pura da inocência massacrada, se perdeu. Como sempre por causa de uma mentira e, ainda por cima, no caso, de uma mentira inútil.
Sucede que, para mim, este episódio não acaba aqui. No Semanário de 20 de Junho de 1987, escrevi uma coluna com o título: "Catarina Eufémia não estava grávida". Falando de Cunhal, falava realmente do extraordinário romance de Clara Pinto Correia Adeus, Princesa e dizia: "No lugar por excelência da luta e do heroísmo revolucionário, no lugar sobre todos mitológico, o Baleizão, Clara Pinto Correia descobre um Alentejo real e terrível. Um Alentejo que não se esqueceu da antiga miséria e a vê voltar pé ante pé, mas já não acredita em nenhuma promessa de libertação. Na terra ficaram só os velhos. As ceifeiras de Manuel Pavia desapareceram das searas. Os sobreiros continuam ali por empréstimo, porque verdadeiramente pertencem à canção de protesto. O cenário da epopeia soçobra e por detrás dele surge um universo insólito de cafés de fórmica, restaurantes típicos e absurdas discotecas, por onde perpassa uma gente gasta que trafica droga, inventa grupos de rock e sonha com negócios dúbios. A própria epopeia - vem eventualmente a descobrir-se - assentava numa falsificação: Catarina Eufémia não estava grávida. Tudo era, afinal, mentira."
Sem saber, Clara Pinto Correia tinha adivinhado. A criação, como lhe compete, criava a realidade. Clara, por causa de um incidente trivial de plagiato, numa terra onde toda a gente plagia (e recebe prémios por isso) saiu dos jornais. No meio da obscena mediocridade que por aí se agita, faz falta a inteligência, a subtileza e o poder de uma grande escritora. Muita falta. Volta, princesa."

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