7.1.06

"Escolhas de", 2005

"Escolhas de LOURENÇA BALDAQUE
"Isräel: un examen moral", Avraham B. Yehoshua (Editora calmann-lévy, 2005)
"O ódio pelo povo judeu (...) tem uma causa profunda?" Com esta pergunta começa o ensaio, "Israel: un examen moral", ao longo do qual o autor tenta responder, através de uma análise crítica de elementos que constituem a história e a identidade do povo judeu, e do confronto ou reforço das ideias de historiadores que se têm debruçado sobre o tema. Trata-se de um livro que vem estimular a discussão, abrindo novos caminhos de reflexão sobre a questão de Israel e do povo judeu. Escrito por aquele que é considerado um dos maiores escritores israelitas da actualidade, e que acredita "profundamente nas lições da história, sobretudo no que diz respeito ao meu país."

«Trois jours chez ma mère», François Weyergans (Editora Grasset, 2005)
Vencedor do Prémio Goncourt 2005, "Trois Jours chez ma mère" conta a história de um escritor que numa série de "flashbacks", enquanto tenta acabar um livro, relembra aventuras amorosas, antigas amizades ou situações caricatas, mas também divaga sobre os projectos que tem em mão e que nunca consegue acabar. Trata da angústia de não concluir aquilo que se propõe fazer, com considerações sobre a vida actual, e de como o passado o influencia na escrita. São estas hesitações, memórias e fantasias que compõem o livro. Revela um humor irónico sobre as contrariedades da vida, que muitas delas aqui descritas são as do próprio escritor, que se põe no papel das personagens principais, seja François Weyergraf ou Graffenberg.
François Weyergans é romancista, crítico e realizador de cinema.

"As mulheres que amaram Juan Tenório", Hugo Santos (Ed. Dom Quixote, 2005)
Hugo Santos, poeta e romancista, venceu o Prémio Literário Miguel Torga 2005 com esta obra, onde o autor relata diversas experiências sentimentais de um jovem, numa pacata vila alentejana. Podemos considerar a personagem principal do livro como sendo um Don Juan moderno, uma possível reinvenção da personagem "Don Juan Tenório", de 1844, do espanhol José Zorrilla. De salientar a originalidade da escrita, que vem revitalizar e modernizar a eloquência característica dos finais do século XIX.

"Gli amori difficili", Italo Calvino (Editora Oscar Mondadori, re-edição em 2005)
Re-editado em Itália, "Gli Amori Difficili" é uma recolha de contos e duas novelas, escrito nos anos 50 e 60, editados pela primeira vez na Editora Einaudi em 1970. O autor trata o tema do silêncio inerente às relações humanas, - "um itinerário através do silêncio" - presente também no desejo secreto de concretizar aventuras amorosas. É esta aventura, que aqui nem sempre se concretiza, que Calvino expõe com ironia, transmitindo a sensação de uma felicidade esporádica e abstracta. As duas novelas no final do livro falam das calamidades naturais e da evolução da cidade industrial, contrapondo a alegria da imaginação, presente nos contos, com a dura realidade que o autor descreve no final.

"O Japão - uma antologia de escritos sobre o país", Lafcadio Hearn (Editora Cotovia, 2005)
Foi em 1889 que o jornalista de origem grega, Lafcadio Hearn, emigrante nos Estados Unidos desde os dezanove anos, foi enviado para o Japão, - numa altura em que o Oriente suscitava curiosidade aos ocidentais - a fim de se tornar correspondente de um jornal. Lafcadio Hearn apaixonou-se pelo país, onde se fixou nos últimos anos da sua vida, tendo deixado mais de 4.000 escritos sobre o Japão e as suas gentes. Neste livro encontramos uma selecção destes textos, com descrições poéticas e pormenorizadas, que revelam uma admiração autêntica pela cultura e costumes japoneses.

"Ilíada", Homero. Trad. Frederico Lourenço (Livros Cotovia, 2005)

"Poemas", Oscar Wilde.Trad. Margarida Vale de Gato (Editora Relógio d"Água, 2005)

escolhas de MANUEL JORGE MARMELO

"A Tempestade", de Juan Manuel de Prada (Âmbar)
"Jerusalém", de Gonçalo M. Tavares (Caminho)
"Estação Carandiru", Drauzio Varella (Palavra)
"A Margem Imóvel do Rio", Luiz António Assis Brasil (Ambar)
"Manaus", Francisco José Viegas (Asa)

Não sendo fácil, em nenhuma circunstância, escolher cinco de entre os muitos livros que se leram num ano, em 2005 a tarefa revela-se ainda mais complicada, tendo em conta que uma boa parte do tempo foi consumida a ler livros que, sendo de sempre, deviam ser dos anos todos. Falo concretamente de "Grande Sertão; Veredas", de João Guimarães Rosa, e de "Morte a Crédito", de Louis-Ferdinand Céline, na fantástica tradução que a Luiza Netto Jorge fez na década de 1980 para a Assírio & Alvim. Mas foram estas, em 2005, as leituras que mais marcas deixaram no leitor que sou, servindo de desigual ponto de comparação para os restantes livros que me passaram pelas mãos.
Dito isto, destaco cinco livros editados no ano que passou e que, por um ou outro motivo, me ficaram na memória. Desde logo, o luminoso, ensombrecido e veneziano "A Tempestade", do espanhol Juan Manuel de Prada, que cria um instigante clima de mistério em torno da interpretação de uma tela do pintor renascentista Giorgione. Por motivos não muito diversos, embora sem o peso suplementar da descoberta, retive a leitura de "Manaus", Francisco José Viegas, e de "A Margem Imóvel do Rio", Luiz António Assis Brasil, livros em que também está presente a componente viagem, o mistério e a demanda, e cujas narrativas são servidas por uma escrita límpida, enxuta, clara e inteligente, na qual se podem respirar diferentes ares. São, nos três casos, boas histórias bem contadas - e não há-de ser preciso dizer mais.
Para o fim deixo "Jerusalém", de Gonçalo M. Tavares, por constituir a confirmação de uma voz original e de um imaginário absolutamente próprio no quadro da actual literatura portuguesa, e "Estação Carandiru", a mega-reportagem que o médico brasileiro Drauzio Varella escreveu a partir da sua experiência profissional naquele que foi o maior presídio da América Latina. É um mergulho no inferno e convém que, de vez em quando, nele excursionemos.

escolhas de MARIA FILOMENA MÓNICA

1- Alan Bennett, "Untold Stories", Londres, Faber e Faber, 2005. É um livro comovente e engraçado, escrito por um dramaturgo inglês desconhecido em Portugal, autor de uma das mais geniais peças, "Talking Heads", jamais escritas para televisão. Na obra agora publicada, Bennett juntou , entre outros, um ensaio longo sobre a morte da mãe, os seus diários entre 1996/2004 e vários artigos sobre pintura.

2- Patrick Wilken, "Império à Deriva: A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro, 1808/1821"), Porto, Civilização, 2005. Não sendo especialista, não me pronuncio sobre os factos, muitos dos quais são, para mim, uma total novidade. Trata-se do tipo de obra que, sobretudo por más razões, poderá vir a ser cilindrada pelos especialistas. A verdade é que nenhum deles teve a imaginação suficiente para abordar o tema. A ideia é original, a prosa fluida e a caracterização das personagens soberba. O autor, um antropólogo australiano, decidiu não colocar as fontes em nota de pé de página, o que se lamenta.

3- Bryan Ward-Perkins, "The Fall of Rome and the End of Civilization", Oxford University Press, 2005. Trata-se de um livro pequeno sobre um tema enorme. A pergunta clássica - "Por que caiu o Império Romano?" - é abordada com clareza, originalidade e inteligência. O autor contesta a tese, modernamente tida como ortodoxa, de que o Império caiu, não violentamente, mas devido à transição pacífica para o domínio germânico. Revendo esta teoria, Ward-Perkins recorda a violência dos últimos dias do Império e as dificuldades que os cidadãos de Roma enfrentaram para se adaptar aos seus novos e bárbaros senhores.

4- Orhan Pamuk, "Istanbul: Memories of a City", Londres, Faber and Faber, 2005. Alguns leitores terão ouvido falar deste autor, uma vez que tem sido recentemente notícia nos jornais, devido ao facto de ter mencionado o genocídio, entre 1915/20, de um milhão de arménios, uma revelação que, segundo o Código Penal turco, é susceptível de o levar à prisão. O livro é um relato sobre a cidade que, em tempos, se chamou Constantinopla. Misturando memórias da sua vida pessoal e recordações da sua cidade natal, Pamuk dá-nos a ver o que era, e é ainda, uma cidade lindíssima, ao mesmo tempo melancólica e moderna.

escolhas de MÁRIO CLÁUDIO

Destacarei quatro obras portuguesas, três romances e uma antologia. Mas devo referir que ainda não li um bom lote de livros, publicados em Portugal no ano que terminou, e em relação aos quais alimento expectativas variáveis.

"A Casa Quieta", de Rodrigo Guedes de Carvalho, Publicações Dom Quixote, magnífico duelo com o tempo como só um escritor de qualidade é capaz de realizar, convida-nos a assumir a evidência de que um brilhante homem da comunicação pode coincidir com um criador literário de primeiríssima água.

"A Voz da Terra", de Miguel Real, Quidnovi, atrai-nos aos espelhos da nossa identidade, implicando-nos numa espécie de prodigiosa bulimia do verbo, e dos conteúdos por ele servidos, que nos confirma na consciência de que os livros maiores são afinal os que reclamam de nós múltiplas experiências de leitura, realizadas em tempos diversos, constantemente inovadoras, e constantemente empolgantes.

"Notícias do Labirinto", de Júlio Moreira, Ambar, realiza um belo exercício de destreza narrativa, associando o romance policial ao psicológico, e conduzindo todo um entrecho com invejável e luminosa ductilidade.

"Dez Cartas e um Bilhete-Postal para Eugénio de Andrade", de vários autores, Asa, configura uma esplêndida homenagem, vivida em textos de grande qualidade, e num aparato gráfico inigualável, ao poeta maior que recentemente nos deixou.

escolhas de MIGUEL REAL

1.- Eduardo Lourenço, "A Morte de Colombo" (Gradiva), o explícito fim do ciclo de pensamento heterodoxo na cultura portuguesa do século XX, iniciado pelo autor em 1949, com "Europa ou o Diálogo que nos Falta" ("Heterodoxia I");
2.- Carlos Leone, "Portugal Extemporâneo. História das Ideias do Discurso Crítico Moderno, Séculos XVI-XX", 2 volumes (IN - CM), ensaio que doravante revolucionará a historiografia cultural portuguesa, sobretudo o segundo volume, evidenciando o que de pré-moderno e moderno alimentou o pensamento português do século XX - daí o título de "extemporâneo";
3.- Mário Cláudio - "Os Sonetos Italianos de Tiago Veiga" (Asa), o triunfo do classicismo sobre o actual fragmentarismo poético - um "caso" que alimentará inúmeras teses de mestrado (se entretanto não forem substituídas por relatórios com 10 000 palavras, instituídos pela dominante mentalidade dos gémeos Sócrates-Cavaco) na segunda metade do século; medianíssima a restante poesia portuguesa publicada este ano;
4.- Ao mesmo nível de qualidade, "Longe de Manaus" (Asa), de Francisco José Viegas, romance dos destroços e da solidão do fim do Império, e "Bastardia", de Hélia Correia (Relógio d"Água), momento de suprema maturidade estilística da autora e entronização, depois de "Lilias" (2001), do realismo simbólico em Portugal;
5.- José Saramago - "As Intermitências da Morte" (Caminho), o derradeiro combate da permanente guerra do autor com o mundo, semelhante ao de Vergílio Ferreira em "Para Sempre"; aguardemos de Agustina o seu romance sobre a morte.

escolhas de MIGUEL SERRAS PEREIRA

Em lugar dos cinco livros publicados na região portuguesa, assinalarei cinco faltas, que provavelmente continuarão a sê-lo em 2006. As cinco poderiam ser largas dezenas, no mínimo. É absolutamente aterrador o volume das obras de primeira importância - incluindo autores portugueses clássicos e contemporâneos - que continuam indisponíveis na cena editorial deste país.
1. Em 2005, o ano do Quixote, deveriam ter sido publicadas em tradução alguns dos trabalhos de introdução e problematização da sua leitura. Citarei apenas um título, que conheci graças ao conselho precioso da Maria Fernanda
de Abreu: Augustin Redondo, "Otra manera de leer El Quijote", Madrid, Castalia, 2ª ed., 2005.
2. As principais obras de Zygmunt Bauman continuam por editar em Portugal. Que eu saiba, existe apenas, não sei se disponível ainda, um pequeno volume sobre "A Liberdade", editado há já anos pela Estampa. As suas análises sobre
o trabalho, a mundialização, a "modernidade líquida" são, no entanto, armas de inteligência crítica e democrática preciosas para quem queira abrir caminhos enquanto passa, nas presentes "encruzilhadas do labirinto" (Castoriadis).
3. Os escritos críticos e políticos de George Orwell - se exceptuarmos a edição de "Homenagem à Catalunha" dada à estampa pela Livros do Brasil em 1975, numa tradução que deixa a desejar - são uma ausência devastadora, que
se manteve em 2005. A necessidade daquilo a que poderíamos chamar um mínimo de decência institucional e política torna quase desesperadamente obrigatória a sua leitura e discussão.
4. Ex-doutoranda, continuadora e colaboradora do grande pensador e sociólogo canadiano do Québec Michel Freitag - este, com "Arquitectura e Sociedade", editado em estreia entre nós e em boa hora pela Dom Quixote -, Rolande Pinard deveria ter visto traduzido entre nós o seu livro "La révolution du
travail. De l"artisan au manager", onde, através de uma análise histórica apaixonante da evolução do trabalho, se mostra que a interrogação política fundamental do nosso tempo passa pela crítica da economia política dominante, na medida em que é esta o verdadeiro paradigma e centro do exercício do poder no mundo contemporâneo, sendo que a organização da sociedade segundo o modelo gestorial ("managérial", como se lê no original francês, editado na Europa pelas Presses Universitaires de Rennes, em França) do trabalho paralisa a nossa capacidade de agirmos como sujeitos sociais explícitos, tendendo a reduzir-nos cada vez mais a "cidadãos passivos" (sem voto na matéria, portanto), ou a menos do que isso. A leitura de Pinard seria, entretanto, precedida ou seguida com o máximo proveito pela do pequeno livro de Marc Augé, "Pour quoi vivons-nous?", que a partir de uma perspectiva e exemplos completamente diferentes suscita uma interrogação
política solidária.
5. Ainda na mesma ordem de ideias, é quase nula a disponibilidade dos escritos que têm vindo a animar nos últimos anos a discussão sobre "o fim do trabalho": seria importante que se traduzissem, citando-se aqui apenas
alguns exemplos lacunares e avulsos, as análises sobre a matéria de Jacques Ellul, Christopher Lasch, Richard Sennett (cujo ensaio sobre a "Corrosão do Carácter" teve, apesar de tudo, uma deficientíssima tradução portuguesa), Claus Offe, de novo Zygmunt Bauman, André Gorz, Robert Castel, Jeremy Rifkin, Dominique Méda, Manuel Castillo, Imanol Zubero. O enquadramento ou aprofundamento aconselhável aqui poderiam ser traduções de uma antologia de certos ensaios fundamentais de Castoriadis, e/ou dos escritos de tradição orwelliana de Bernard Crick: o clássico "In Defense of Politics", bem como "Democracy: a Very Short Introduction" e "Essays on Citizenship".

escolhas de NUNO CRATO

Em 2005 foi um ano editorial rico. Tanto na ficção como na divulgação científica, no ensaio e noutros géneros. Restringindo-me a cinco obras, e com consciência da arbitrariedade da escolha, destaco os seguintes.
"Ilíada", de Homero, editada pela Cotovia, em nova e fluente tradução de Frederico Lourenço, é uma escolha evidente. Talvez a primeira obra da literatura europeia, uma ponte de contacto perene entre nós e o nosso passado, uma oportunidade para ler ou reler a mãe de todas as narrativas, desta vez em tradução integral em verso.
"Rousseau e Outros Cinco Inimigos da Liberdade", de Isaiah Berlin, em tradução da Gradiva, é uma colectânea de seis palestras radiofónicas do grande pensador britânico. Tornaram-se famosas pela clareza com que trouxeram ao grande público a mais profunda análise da história das ideias. Interessante e inteligente.
"Curiosidade Apaixonada", de Carlos Fiolhais, é um dos grandes livros de divulgação científica do ano. Mais do que divulgação, é uma obra de cultura. Pela mão de um grande cientista português, que é também um arguto observador da vida, somos levados a ver a ciência por detrás dos locais, das coisas e dos acontecimentos.
"Como Vejo a Ciência, a Religião e o Mundo", de Albert Einstein, em organização e tradução da Relógio D"Água, oferece a muitos uma primeira oportunidade para conhecer o pensamento do grande físico. Leiam-se, entre outros textos, as primeiras impressões de Einstein sobre os Estados Unidos, país onde escolheu viver o resto dos seus dias, o seu elogio de Copérnico e os seus curtos escritos sobre educação.
"Os Relógios de Einstein e os Mapas de Poincaré", de Peter Galison, em tradução da Gradiva. Um dos maiores historiadores de ciência da actualidade revela o ambiente em que a Teoria da Relatividade foi criada e mostra como as preocupações práticas com problemas de sincronização de instrumentos podem ter influenciado e estimulado o jovem Einstein.

escolhas de NUNO JÚDICE

Está na moda dizer mal da França e da cultura francesa : é por isso que ponho em primeiro lugar um livro inteiramente francês, no espírito e na letra: o "Dictionnaire égóïste de la littérature française" (ed. Grasset). São 962 páginas de puro gozo intelectual, onde ficamos a saber que Napoleão se deliciava em Santa Helena com a leitura de "Paul et Virginie" ou que Richelieu tinha ao seu serviço Corneille para lhe escrever as peças de teatro que ele assinava. Também da Grasset (pura coincidência) recomendo o luso-francês "Poulailler" de Carlos Batista. Tradutor de António Lobo Antunes para a Christian Bourgois, Batista escreve um romance que apresenta um retrato da emigração portuguesa em França sem qualquer complacência, integrando o relato realista das duas gerações - a dos pais, posta à margem da integração, e a dos filhos, que procura encontrar o seu lugar na sociedade francesa onde é sempre vista na dupla situação de pertença e exclusão - dentro de uma alegoria do galinheiro, com uma crueldade que evoca Kafka. Quanto a Portugal, chamaria a atenção para dois livros de poesia: um magnífico e sólido "Laocoonte, rimas várias, andamentos graves" de Vasco Graça Moura, que prossegue o diálogo com literatura, música, artes plásticas, de um poeta que vai colocando as suas peças no tabuleiro da memória dos dias e das estações do ser; e a "Poesia reunida (1990-2005)" de Ana Luísa Amaral, que a confirma como uma das mais coerentes escritas da nossa poesia contemporânea, que integra plenamente a dimensão do quotidiano, do real e de um presente que sugere o poema como espaço duplamente reflexivo, em que o poético resulta por vezes de um simples desvio de sentido ou da passagem para uma metáfora englobante do universo envolvente que o poema constrói. Por fim, na ficção, "Doidos e amantes" de Agustina Bessa-Luís: retomando a tradição portuguesa do folhetim, trata-se de uma história de amor louco passada na nossa 1ª República, que Agustina revê à luz de um olhar íntimo e cruel sobre a paixão que subverte o equilíbrio social, na sequência aliás de dois outros livros seus que seguem o mesmo projecto, "Adivinhas de Pedro e Inês" e "Florbela Espanca", assim se completando uma notável trilogia sobre a mulher vencida pelas circunstâncias da política, da literatura ou da moral. Poderei discordar da visão que nos dá de Maria Adelaide (também há anos me passou pelas mãos o seu testemunho impresso em que ela rejeitava a acusação de loucura que lhe foi feita pelo marido, com a cumplicidade de conhecidos médicos da época) mas trata-se de um livro a não perder, de entre alguns outros romances que mereceriam destaque neste ano de 2005.

escolhas de NUNO MARKL

"À Boleia pela Galáxia", de Douglas Adams (Ed. Saída de Emergência)
Adams é um genuíno poeta e filósofo da comédia cuja obra é pouco conhecida em Portugal. Ele foi uma espécie de sexto elemento invisível dos Monty Python antes de se dedicar a escrever esse monumento do humor, de sátira social e da ficção científica mundial que são os cinco volumes da saga "The Hitchhiker"s Guide to the Galaxy". Uma das virtudes do filme que estreou, baseado no primeiro livro da saga, foi conquistar o interesse de uma editora portuguesa em reeditar esta pequena grande obra-prima. Não é um livro fácil de traduzir, mas fiquei feliz ao constatar que esta tradução presta um óptimo serviço às palavras e ao tom muito peculiar de Douglas Adams. O filme acabou por não ser um êxito gigantesco de bilheteira, mas espero que isso não desencoraje a Saída de Emergência de traduzir o resto da saga. Independentemente de qualquer filme que se faça, as aventuras de Douglas Adams são, acima de tudo, livros magníficos.

"Everything is Illuminated", de Jonathan Safron Foer (Penguin Books)
A primeira edição deste livro é de 2003, mas este ano ele foi reeditado com nova capa, ligado à estreia do filme que nele se baseia. Eu fiquei conquistado pelas imagens que vi do filme e comecei a investigar na Internet sobre a obra deste jovem escritor americano. Acabei por encontrar esta nova edição e fui, de facto, iluminado. Há muito tempo que um livro não me deixava tão sem palavras, tão incapaz de continuar a ler sem reler esta e aquela passagem. Dei por mim a interromper várias vezes a leitura para ir a correr ter com quem estivesse por perto, ansioso por partilhar momentos deste livro. É uma história sobre um jovem americano na Ucrânia, em busca das suas raízes e é uma fusão de comédia, drama, poesia, contada através de cartas, apontamentos, esboços para um romance. É um milagre. Não me arrependo de ter preferido a versão original à tradução portuguesa, porque muita da magia do livro tem a ver com a maneira como a língua inglesa é reinventada por um dos narradores, um guia ucraniano.

"Gato fedorento: o Blog", de Miguel Góis, Ricardo de Araújo Pereira, Tiago Dores, Zé Diogo Quintela (Cotovia)
Serei sempre fã deste bando e sou continuamente surpreendido por eles. Este livro é a prova viva de uma versatilidade que eu conheci de perto, ao trabalhar com todos eles nas Produções Fictícias. É totalmente diferente da série de televisão, mas igualmente inspirado. Aqui, os gatos estão em modo de alfinetada na actualidade, num livro que, se um dia houver um curso sobre a escrita e o poder dos blogs, deveria ser de leitura obrigatória. É particularmente divertido acompanhar as polémicas que eles foram coleccionando ao longo da existência do blog e a quantidade de pessoas que conseguiram irritar e confundir. Gosto de os ver na televisão, mas tenho pena que isso lhes roube tempo para continuarem a escrever no blog.

"Great Lies To tell Small Kids", de Andy Riley (Hodder & Staughton)
Andy Riley é um guionista britânico de televisão que criou material para algumas das melhores "britcoms" recentes. Até ao lançamento dos seus dois deliciosos volumes dos "Coelhinhos Suicidas", o mundo desconhecia o talento dele para criar "cartoons". Não só ele desenha maravilhosamente, como consegue, com imagens estáticas, criar uma respiração de desenho animado. Este novo livro dele mantém a veia politicamente incorrecta dos "Coelhinhos Suicidas", mas vai mais longe, porque trabalha agora com texto, criando um rol de mentiras que vão desde a provocação à "South Park" até momentos de uma estranha e inesperada poesia visual. Gosto particularmente da mentira que diz que, antigamente, antes de haver iPods, as pessoas tinham de andar com uma orquestra privada atrás, tocando as suas músicas preferidas.

"Nove Histórias", de Eduardo Madeira (Plátano Editora)
Portugal é um país fútil e superficial, pelo que imagino que muita gente (incluindo gente supostamente informada) passe ao lado de "Nove Estórias" colocando-lhe a etiqueta de "livro de piadas escrito por aquele gajo que faz entrevistas em festas, na SIC". Acontece que o Eduardo Madeira é muito, mas muito mais do que isso. Não só é um brilhante argumentista de humor para os mais diversos meios, como é também um autor de hilariantes e inteligentes "short stories" que fazem lembrar o Woody Allen dos tempos de "Sem Penas" e "Para Acabar de Vez com a Cultura". Admiro, neste livro, a maneira como ele consegue imediatamente arrancar gargalhadas ao leitor ao fim do primeiro parágrafo da primeira história. Não é qualquer autor de humor que consegue uma proeza destas. Este livro merece ser descoberto.

escolhas de PEDRO ALMEIDA VIEIRA

"Longe de Manaus", de Francisco José Viegas (Asa)
Quem espera um romance policial, desengane-se. FJV consegue, com o seu "alter ego" Jaime Ramos, subverter o género policial, criando um fascinante livro sobre a natureza humana e, enfim, sobre a vida.

"O Cavaleiro da Águia", de Fernando Campos (Difel)
Primeiro livro que li após terminar o meu romance. Fez-me bem para me colocar no meu devido sítio: Fernando Campos consegue, com a sua prosa poética ímpar, um relato sobre um período histórico (nas vésperas do nascimento de Portugal) onde não há heróis nem vilões; apenas homens e mulheres. O recurso aos intermezos dos capítulos é uma mais-valia deliciosa.

"Inveja - Mal Secreto", de Zuenir Ventura (Palavra)
Este jornalista confessa, no início, que sentiu uma "mordida" ao constatar que, de entre os escritores brasileiros convidados para escrever sobre os sete pecados mortais, tinha ficado com o menos apetecível: a inveja. Mas, afinal, acabou por escrever, misturando reportagem, biografia e ficção, um invejável livro sobre este pecado que todos conhecem, mas muitos poucos confessam.

"As Intermitências da Morte", de José Saramago (Caminho)
Quem acusa Saramago de ter perdido o talento após receber o Nobel deveria curar-se da inveja (lendo talvez Zuenir Ventura). A ideia explorada nesta sua recente obra é brilhante (uma espécie de literário ovo de Colombo) e a escrita (sobretudo na primeira parte) possui um humor refinado. Saramago, que já é um escritor imortal, acaba por conseguir, como homem mortal, gozar com a (minúscula) morte.

"O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa", de Miguel Real (Quid Novi)
Depois de consultar mais de uma dezena de biografias e ensaios sobre o Marquês de Pombal para a escrita do meu romance, catalogáveis apenas em pró e anti-Pombal, soube-me bem ler este ensaio isento e imparcial de Miguel Real. E nomeio-o para também compensar o facto de ainda não ter lido o seu romance "A Voz da Terra", que me dizem ser excelente.

escolhas de POSSIDÓNIO CACHAPA

"Bastardia", Hélia Correia (Relógio d"Água)
Discreta como um dia de chuva mansa, Hélia Correia vem lembrar-nos a existência das sereias e inevitabilidade de voltar aos lugares de onde partimos. E também que os melhores escritores são os menos divulgados.

"A Curva do Rio Sujo", Joca Reiners Terron (Palavra)
Terron pertence a uma nova geração de escritores que produz a sua obra em contexto urbano (S.Paulo, na ocorrência). Contudo, a memória do grande Brasil rural cola-se-lhe aos pés, como uma lama incómoda. Um dos muitos autores interessantes e desconhecidos deste lado do mar.

"In The Shadow of No Towers", Art Spiegelman (Viking, Penguin)
Do autor de "Maus", uma terrível paródia, em banda desenhada, ao 11 de Setembro. O mesmo humor dolorido da obra anterior, agora num gigantesco livro, de capa duríssima, onde se recria o trabalho de grandes autores do género, como George Harriman ou Winsor MacCay.

"Planisfério Pessoal", Gonçalo Cadilhe (Oficina do Livro)
Publicado no "Expresso", sob a forma de crónicas semanais, este conjunto de textos demonstra-nos 3 coisas: o mundo é uma fonte de descobertas e de contemplação, Portugal é ainda mais pequeno do que julga e que todos os homens diferentes são iguais. Profiláctico para quem acredita que o paraíso é para os lados de Cancun.

"Brazil", diversos autores (Lonely Planet)
Para sobreviver com o menor número de danos no corpo, à febre de viajar provocada pelo livro anterior. Muito útil quando o "ónibus"lotado nos larga no meio de uma terra nos confins da Amazónia...

escolhas de RICHARD ZIMLER

"As Velas Ardem Até ao Fim" de Sandor Márai (Dom Quixote)
"In Tasmania" de Nicholas Shakespeare
"Twilight of Love: Travels with Turgenev" de Robert Dessaix
"Forgotten Crimes: The Holocaust and People with Disabilities" de Suzanne E. Evans
"Deaf People in Hitler"s Europe" de Donna F. Ryan e John S. Schuchman

escolhas de RODRIGO GUEDES DE CARVALHO

"As perturbações do pupilo Torless", Robert Musil. Trad. João Barrento (D.Quixote)
A alegria de reencontrar um romance fundador.

"Deste viver aqui neste papel descripto", António Lobo Antunes (D.Quixote)
A corajosa publicação do despontar de um extraordinário escritor.

"A cortina", Milan Kundera (Asa)
Uma viagem de clarividência ao interior do "ofício do romance".

"Satanás", Mário Mendoza (Temas e Debates)
Uma dureza emocional servida por uma escrita seca ao osso.

"Os meus sentimentos", Dulce Maria Cardoso (Asa)
Risco assumido de um romance em ladainha, sufocante e depurado.

E ainda:

"Dispersos", José Cardoso Pires (D.Quixote)
"Paris nunca se acaba", Enrique Vila-Matas (Teorema)
"Naif.super.", Erlend Foe (Fenda)
"Um homem célebre", Machado de Assis (Cotovia)
"Num país livre", V.S.Naipaul (D.Quixote)

escolhas de ROSA LOBATO FARIA


"D. Quixote de La Mancha" , Miguel Cervantes, trad. Miguel Serras Pereira, Ilustrações de Salvador Dali (Publicações D. Quixote)
Uma edição maravilhosa de um livro eterno com ilustrações de um pintor imortal.


"Os Meus Sentimentos", Dulce Maria Cardoso (Edições ASA)
Esta é uma escritora que ombreia com os nossos maiores romancistas. Utiliza a língua e a estrutura narrativa com uma originalidade que a torna inconfundível.


"A Casa Quieta", Rodrigo Guedes de Carvalho (Publicações D. Quixote)
Uma magnífica surpresa. Um digno discípulo de Lobo Antunes já na plenitude de uma voz própria.


"Longe de Manaus", Francisco José Viegas (Edições Asa)
O que mais apreciei neste livro, para além do enredo policial inteligentemente urdido, foi a mestria com que demonstra as virtualidades da linguagem, enchendo o texto de música e sabores. Um hino à língua portuguesa, rica una e múltipla.


"O Sol dos Scorta", Laurent Gaudér (Edições Asa)
Escritor a um tempo vigoroso e musical numa saga telúrica onde o sol nos abrasa e a terra acorda as nossas raízes mais profundas. Belíssimo.


"Leonardo da Vinci" - 2 Vol. Desenhos e esboços e pintura completa (Editora Taschen)

escolhas de RUI TAVARES

1. "Os Emigrantes", de WG Sebald (ed. Teorema)
2. "O Mal no Pensamento Moderno", de Susan Neiman (ed. Gradiva)
3. "Dance dance dance", de Haruki Murakami (ed. Estação da Liberdade, de São Paulo, Brasil)
4. "Reflexões sobre a vaidade", de Matias Aires (ed. Estampa, já antiga)
5. "Paradise Lost", de John Milton (ed. MacMillan de 1885, comprada em alfarrabista)
Os pressupostos destes jogos literários sugerem que o participante tenha 1) fundos ilimitados para compra de novidades editoriais; e 2) dias com mais cinquenta horas. Há também uma certa obrigação democrática de privilegiar títulos a que o leitor tenha um acesso razoável, nomeadamente que estejam traduzidos para português e cujos exemplares se encontrem nas livrarias das maiores cidades do país. Aqui do meu lado, a porca torce o rabo enquanto tento cumprir com esta missão. Desde logo, porque a crise me forçou (tal como, estou certo, a muitos dos que me lêem) a moderar as minhas compras de novidades de catálogo com leituras na web e em bibliotecas. E em segundo lugar, porque a ideia de "novidade" para um historiador tem caprichos particulares que não se regem pela data que se encontra na ficha técnica ou se descobre pelo depósito legal. Juro que tentei jogar o jogo dos "melhores de 2005" sem falsear muito as regras. Vocês decidirão do resultado.
1. WG Sebald é um milagre da literatura; um autor que se poupou do público até à maturidade e surgiu já completamente formado no domínio do seu mundo. É dessa época "Os Emigrantes", um conjunto de quatro contos, publicado este ano pela Teorema. Em 2000 este foi o primeiro de Sebald que li, na sua versão inglesa (os originais são em alemão). A partir de metade do livro dei por mim subjugado; no fim já chamava nomes ao autor por pura inveja: "como é que este sacana consegue escrever tão bem?". Mas não só ele conseguia "Os Emigrantes", como em 2001 atingiu a grandeza literária de "Austerlitz" (já publicado em Portugal pela Teorema), e que para mim e muita gente continua a ser o melhor livro deste século de cinco anos já contados. Depois de publicar "Austerlitz", Sebald teve um enfarte enquanto conduzia a filha a casa e morreu no acidente de automóvel que se seguiu. Ao todo, entre 1990 e 2001, viveu apenas onze anos como escritor, mas fez um caminho da maior consistência e originalidade - pelo que me apetece dar uma bicada na opinião de Eduardo Pitta, que se referiu recentemente a Sebald como um autor a quem se presta vassalagem por moda literária. Pois eu prefiro participar desta unanimidade-sem-Pitta em torno de Sebald do que perder um autor destes por desconfiança das modas. Tenho dito.
2. O mesmo vale para o elogiadíssimo ensaio de Susan Neiman sobre "O Mal no Pensamento Moderno", publicado este ano pela Gradiva, uma "história alternativa da filosofia" cujo argumento muito bem cosido, que vai da Lisboa de 1755 à Auschwitz de 1945, se lê com muito proveito. Este foi um livro do meu 2005 também por razões pessoais: enquanto escrevia "O Pequeno Livro do Grande Terramoto", o texto audacioso de Neiman deu-me coragem para pegar em 1755 por pontas de que os historiadores normalmente se resguardam. Tenho-lhe esta dívida pública por pagar.
3. Sempre tive a fézada de que aos livros de Haruki Murakami assentaria especialmente bem o português de São Paulo, não só por esta ser a única metrópole lusófona da divisão de Tóquio, onde se passam muitos dos romances murakamianos, mas também por ser esta a cidade onde vive a maior comunidade de japoneses fora do Japão. Em 2005 uma editora sedeada no bairro japonês-paulista da Liberdade publicou um dos melhores de Murakami, "Dance dance dance", em tradução de Lica Hashimoto e Neide Hissae Nagae. Talvez melhor ainda é "Caçando Carneiros", praticamente a primeira parte de "Dance dance dance", que já tinha sido publicado pela mesma editora - Estação Liberdade - em 2001. Recupero "Dance dance dance" para esta lista somente para espicaçar as editoras portuguesas, que após um ímpeto inicial de dois títulos assim mais para o levezinho não voltaram a publicar Murakami, nem nunca o traduziram do original apesar de haver quem o possa fazer. Na verdade, o meu Murakami do ano foi a série de entrevistas às vítimas e autores dos ataques de gás sarin que há dez anos lançaram o pânico e a morte no metro de Tóquio. Chama-se "Underground. The Tokyo gas attacks and the japanese psyche". As entrevistas aos membros da seita religiosa que planeou os ataques produzem no leitor uma espécie de efeito magnético, viciante e assustador. No que ao terrorismo, à religião e ao mal diz respeito, temos aqui mais sumo do que em todos os neoconservadores nacionais e estrangeiros espremidos juntos.
4 e 5. Para os últimos dois títulos decidi esquecer as novidades de catálogo e assinalar os dois livros que mais novos me pareceram, nas ideias e na linguagem, apesar de nos chegarem do século XVIII e XVII, respectivamente. Este foi o ano em que foi concedido mergulhar a fundo nas "Reflexões sobre a vaidade", de Matias Aires - numa edição pequenina e antiga, da Estampa, que agora tenho quase sempre no bolso do casaco - e no "Paradise Lost" de John Milton, que leio antes de dormir. Uma das minhas decisões de ano novo passa por estes dois livros, mas é segredo.

escolhas de RUI VIEIRA

Os livros 2005 que mais espaço ainda me preenchem (sem qualquer ordem):
Nuno Júdice, "O Anjo da Tempestade", Dom Quixote (a pureza a a linearidade da escrita)
Juan Rufo, "O Galo de Ouro", Cavalo de Ferro (do pouco que escreveu, tudo que se possa ler é ... Juan Rulfo)
Enrique Vila-Matas, "Paris Nunca se Acaba", Teorema (estilo, conteúdo e um viajar no tempo cheio de imagens)
Cristina Silva, "Bela", Ambar (Florbela Espanca sempre na primeira pessoa)
Laurent Gaudé, "O Sol dos Scorta", Asa (musicalidade)

escolhas de RUi ANGELO ARAÚJO

"O Teu Rosto Amanhã - I. Febre e Lança", Javier Marías (Dom Quixote)
O problema maior desta obra de Javier Marías reside no facto de termos de esperar tanto tempo até deitar a mão ao segundo volume (ainda não editado em Portugal) e mais ainda ao terceiro, em que o autor estava a trabalhar até há pouco tempo, tanto quanto li. O protagonista de "O Teu Rosto Amanhã", detentor de um "dom", é mobilizado por um grupo misterioso, cuja origem remonta à segunda guerra mundial e aos serviços secretos britânicos. O seu trabalho é observar, camufladamente, pessoas submetidas a entrevistas. O objectivo é determinar como serão e agirão essas pessoas no futuro. Passando de forma erudita por aspectos da segunda guerra mundial e da guerra civil espanhola, "O Teu Rosto Amanhã" tem características de romance de espionagem. Mas o interesse maior reside na originalidade do tema proposto (a relação das pessoas com a verdade e a capacidade de prever comportamentos futuros a partir da compreensão do seu carácter actual) e na singular relação que une os dois protagonistas deste primeiro volume.

"Jerusalém", Gonçalo M. Tavares (Caminho)
Em "A Vida e o Tempo de Michael K.", de J. M. Coetzee, a ausência de referências temporais ou geográficas leva-nos a concentrar-nos na idiossincrasia das personagens. O único que temos de certo é que a civilização, seja ela qual for, vive dias de guerra, de caos, de decadência. Um cenário que serve para realçar a condição humana, para extremar as condições ambientais, para isolar o Homem de um meio e de uma sociedade específicas, como se faz às células no microscópio. Os "livros pretos" de Gonçalo M. Tavares constituem uma mesma experiência laboratorial. Este "Jerusalém", o terceiro da série, deixou a guerra na sua forma vivida e remeteu-a para um estudo fabuloso. Mas manteve as suas personagens afastadas da contaminação de uma sociedade identificável. Elas não fazem parte de um estudo sociológico que tem "uma" nação e "um" tempo como influências fundamentais. É a sua condição de seres humanos, com o seu cabaz próprio de sentimentos, fobias, desejos, caprichos e ódios, que importa à história - e à analise. Mas e se a existências assim tão particulares adicionarmos ainda a individualização e a marginalidade que a doença (física ou psicológica) concede?
Gonçalo M. Tavares - o homem que escreve (cria) mais aforismos por parágrafo de toda a literatura portuguesa - é o autor mais original e seguro das novas gerações.


"A Linha da Beleza", Alan Hollinghurst (Asa)

"A Linha da Beleza" retrata a ascensão e queda de Nick Guest, um jovem de classe média que, por um período alargado de tempo, passa a habitar a casa do seu amigo e colega da faculdade Toby, membro de uma família aristocrática e filho de um deputado. Mas o tema central do livro é a alta sociedade londrina dos anos de Margaret Thatcher, com os seus vários vícios (dinheiro, sexo, droga e poder), e o lugar da homossexualidade nela. O que torna mais original e interessante este texto (vencedor do Man Booker Prize em 2004) é exactamente o facto de a visita guiada à elite do poder e ao seu amoral estilo de vida ser feita pela mão de um homossexual, implicando isso um enfoque diferente do comum e uma entrada mais profunda num domínio sensorial que usualmente é apenas aflorado.

"Longe de Manaus", de Francisco José Viegas (Asa)
O detective Jaime Ramos, protagonista de Francisco José Viegas, tem todos os clichés dos inspectores dos filmes policiais - mas isso não me chateou. Jaime Ramos é, e isso não tem mal nenhum, um clássico inspector policial - ao serviço da PJ do Porto. Tem o seu cadáver, o seu adjunto, a sua namorada - que lhe permite um certo celibato de longa idade -, os seus charutos, os seus conhecimentos (sim, também na morgue). Mas "Longe de Manaus" vai, efectivamente, muito mais longe do que uma bem esgalhada história detectivesca. O livro tem "a vida" do morto, cujo rasto ténue obriga a percorrer várias localizações, de África ao Brasil. Mas também tem uma encantadora história paralela em S. Paulo, a de Daniela e Helena, duas amigas a viver uma relação erótica em evolução. E tem um memorável encontro de "irmãos", Portugal e o Brasil, o inspector Jaime Ramos e o delegado Osmar Santos, a quem o português se junta em Manaus no âmbito da sua investigação. Osmar Santos é a imagem do Brasil, descontraído, alegre, espirituoso, sensual, enigmático e com um peculiar cinismo, que joga bem com o de Ramos. O período que o detective Ramos passa em Manaus, contracenando com aquela personagem, com Educandos, um bairro pobre da cidade de Manaus, e com o vasto rio já valia o preço do livro. Viegas arrisca ainda a alternância entre o português do Brasil e o português de cá - o que dá um valor acrescentado ao texto.

"Sábado", Ian McEwan (Gradiva)
Se McEwan alguma vez mereceu o Booker, este "Sábado" seria o livro - muito acima de "Amesterdão".

"Aquilo Que Eu Amava", Siri Hustvedt (Asa)

"Longe da Aldeia", Rui Pires Cabral (Averno)

escolhas de VASCO GRAÇA MOURA

1. "Ilíada", trad. de Frederico Lourenço (Cotovia)
2. "Os sonetos de Tiago Veiga", de Mário Cláudio (Asa)
3. "Álvaro Cunhal", vol. III, de José Pacheco Pereira (Temas e Debates)
4. "Os poemas" de Konstandinos Kavafis, trad. J. M. Magalhães e Nikos Pratisinis (Relógio d"Água)
5. "1755" (os três volumes da FLAD/ PÚBLICO).
6. "Os pré-rafaelitas", antologia poética, trad. Helena Barbas (Assírio & Alvim)

Escolhas de VASCO PULIDO VALENTE

1. O meu livro do ano foi "The Fall of Rome and the end of civilization" de Bryan Ward-Perkins (Oxford University Press). Este livro tem um passado interessante. Os sábios de Bruxelas resolveram promover uma história oficial da "Europa". Nessa história, evidentemente, não se podia falar de "bárbaros" (germânicos, como é sabido), nem insinuar que a "invasão" dos ditos tinha sido uma absoluta catástrofe. Pelo contrário, para não ofender ninguém e mostrar que a União germinava já quando o Império caiu, era preciso transformar a "invasão" da memória colectiva e da literatura clássica numa espécie de "fusão" a benefício mútuo, gradual e quase pacífica. "The fall of the Roman Empire" de Peter Heather (MacMillan), por exemplo, serve discretamente esse propósito.
Mas, com certeza irritado com o eurofilismo pago por Bruxelas, o arqueólogo Bryan Ward-Perkins demonstrou em 139 páginas de evidência "dura" e de um argumento arrasador que a queda de Roma não foi um pic-nic franco-germânico à moda antiga: foi, de facto, "o fim da civilização". Não devo aqui entrar em pormenores. Basta dizer que até ao século IV existia em todo o território do Império uma autêntica economia "globalizada": ou seja, um sistema de produção e distribuição, sofisticado e "monetarizado", que permitia vender os produtos da Síria em Itália ou em Inglaterra, ou os produtos da Grécia e da Espanha em Cartago ou no Egipto. O fim da autoridade universal de Roma e a insegurança e o caos que a seguir vieram acabaram com este mundo. Nove décimos da "Europa" regrediram mil anos para o princípio da Idade do Ferro e levaram mil anos a recuperar. O inimaginável acontece.
2. Um germânico famoso achava que o futuro da raça não estava no sul e no sudeste, mas claramente no leste: uma ideia que trouxe à Europa inteira uma nova catástrofe. Falo de Hitler, como se calculará. Em 1995, a bibliografia sobre Hitler e o nazismo tinha 37.000 "entradas". Calculo que hoje terá mais 15 ou 20.000. Nenhum historiador a pode, mesmo superficialmente, conhecer e os livros de síntese, como a célebre biografia de Ian Kershaw, em geral não vão longe. As coisas mudaram com Richard Evans. Transparentemente influenciado pelo ensaio "seminal" de Michael Burleigh, "The Third Reich, A New History" (MacMillan), Evans até certo ponto consegue fazer compreender a Alemanha nazi. O primeiro volume da sua trilogia ("The Coming of the Third Reich", Allen Lane, Penguin Books) foi publicado em 2003. Saiu este ano o segundo "The Third Reich in Power" (Allen Lane, Penguin Books), que pela primeira vez descreve com precisão e clareza o caminho de um bando de aventureiros de Munique para o poder total e para o Estado assassino do Fuhrer. Sintoma do paroquialismo português, ninguém por cá se interessou pelo livro.
3. À parte o que apareceu em 2005, a grande descoberta do ano foram, para mim, as "Mémoires de la comtesse de Boigne", do reinado de Luís XVI a 1848 (Mercure de France). Carlota Leonor Luísa Adelaide d"Osmond (na intimidade, Adèle) nasceu em Versailles em Fevereiro de 1781 e morreu em Paris em Maio de 1866. Pertencia à mais velha e alta aristocracia de França. Aos cinco anos era mimada por Maria Antonieta e passou depois, miraculosamente, pela revolução, pela emigração, pelo Império, pela monarquia restaurada e pela monarquia de Luís Filipe, sempre no pináculo da "sociedade", que lhe competia por nascimento e por uma esmagadora inteligência. Irmã, cunhada, sobrinha, prima e tia da Europa inteira, conhecia os poderosos como conhecia Constant e Chateaubriand ou Lady Hamilton e Madame de Récamier. Mas nada disso importa muito.
Sendo uma escritora, Adèle sabia que a sua vida só seria interessante, se a contasse bem. Sem uma palavra indiscreta (que naturalmente considerava indigna dela) ou o mais leve vestígio de egocentrismo "moderno" (que, suponho, deixava aos criados), mas com observação, perspicácia, simpatia, sensibilidade, elegância e lucidez, Madame de Boigne reconstrói a tragédia de um século. O prefaciador da edição de 1999 diz que ela serviu de modelo à Madame de Villeparisis de Proust. Não subscrevo. Madame de Boigne serviu simplesmente de modelo a Proust, que não é concebível sem ela."

0 Comments:

Post a Comment

<< Home