13.1.06

Mais escolhas no "Mil Folhas"

"As escolhas de 2005

Mais uma vez o Mil Folhas pediu a romancistas, poetas, ensaístas, a tradutores e a cronistas que este ano publicaram que escolhessem os cinco livros de 2005, editados em Portugal e no estrangeiro, que mais gostaram de ler.

Escolhas de ALEXANDRE ANDRADE

Li poucos livros de 2005, pelo que a minha escolha se baseia numa amostra que nada tem de representativo, fruto de acasos, tropeções, e impulsos fugazes. Feita esta ressalva, começo por falar de José Tolentino Mendonça, cujo novo volume de poesia, “A Estrada Branca” (Assírio & Alvim), confirmou a sua tendência para sondar os fundamentos das relações humanas à luz de uma transcendência por vezes apenas sugerida ou adivinhada. Fascina-me o modo como cada um dos seus poemas encena uma micro-dramaturgia de tensões e perplexidade, remetendo-nos para a fragilidade e infinita estranheza de coisas aparentemente tão corriqueiras como dizer “Eu” e “Tu”. Simplesmente, um dos poetas portugueses mais interessantes e ricos da actualidade.

Descobri a obra de ficção de Frederico Lourenço ao longo deste ano, e, se bem que não seja capaz de aderir completamente a alguns aspectos da sua escrita, reconheço em “A Formosa Pintura do Mundo” (Cotovia) uma tentativa globalmente muito conseguida de combinar um tema dominante (as artes plásticas, e a pintura em particular) com uma predisposição formal muito deliberada, que se concretiza em desconcertantes miniaturas (por vezes não mais do que esboços), e que se harmoniza singularmente com o assunto adoptado. Lourenço cultiva uma ironia, um falso diletantismo e um gosto pelo postiço e pelo “trompe l’œil” narrativo com escassos paralelos no panorama literário do nosso país; e fá-lo de uma forma que nunca é gratuita – a não ser, bem entendido, quando a gratuidade serve os seus propósitos narrativos. Por fim, saliento o mérito (não tão menor como isso) de se tratar de um escritor que não tem medo de ser erudito, num país, como Portugal, em que a inserção de mais de dois nomes próprios por página pode parecer uma desfeita à honesta mediocridade nacional.

De Robert Walser prefiro falar pouco. Todo e qualquer discurso sobre o Walser-modernista-esquecido, sobre o Walser-escritor-para-escritores, para mais não serviria do que (e sem pinga de originalidade) obscurecer a euforia que se apodera do leitor ao percorrer as páginas de uma novela como “Jakob von Gunten, um diário” (Relógio d’Água). Há uma exaltação que se desprende desta prosa desprovida de clímax e espessura psicológica, uma efervescência lúdica segregada pela sucessão de derivas mentais e livre associação narrativa, mas também um lado sombrio e funesto, delicadamente omnipresente. Toda a gente devia comprar todos os livros de Walser à venda nas livrarias, e oferecê-los aos amigos; mas apenas aos bons amigos, e não aos sofríveis.


escolhas de ANTÓNIO MANUEL VENDA

1. “Os Impostores”, Santiago Gamboa (Asa)
O último romance publicado em Portugal do mais genial escritor sul-americano da geração que acaba por suceder a nomes como Gabriel García Márquez ou Mario Vargas Llosa. Três “impostores” – um jornalista e dois professores universitários – viajam até Pequim cada um com o seu objectivo, desconhecendo que estes são, afinal, o mesmo objectivo. A história é contada em parte pelo jornalista e em parte por alguém cuja identidade deixo a cargo da curiosidade do leitor descobrir.

2. “Bilhete de Identidade – Memórias 1943/ 1976”, Maria Filomena Mónica (Alêtheia)
Um género do qual por cá quase se poderia dizer que é novo, ao contrário do que acontece noutros países, como por exemplo em Inglaterra, onde a autora viveu. Uma autobiografia que, mais do que os primeiros 33 anos da vida de Maria Filomena Mónica, mais do que a sua história e as histórias daqueles que dela estiveram próximos, é um retrato de um outro Portugal, ainda bem próximo no tempo, mas distante, muito distante, perdido do mundo, como que encarcerado num filme a preto e branco.

3. “Mao – A História Desconhecida”, Jung Chang/ Jon Halliday (Bertrand)
Uma história da vida de um dos maiores monstros que a humanidade conheceu, capaz de surpreender até quem de ginjeira já conhecia esse mesmo monstro. A investigação é impressionante, mas mais impressionante do que isso é a escrita, soberba, como se estivéssemos na presença de um romance. Bom, não faltará quem veja em muitas das suas passagens apenas um romance, uma grande ficção, inclusive gente respeitável, mas isso são outras histórias.

4. “As intermitências da Morte”, de José Saramago, (Caminho)
Saramago ao seu melhor nível, num romance que é uma surpreendente reflexão sobre a morte, a partir da história de um país inominado, mas que tem tudo para ser Portugal, um país onde as pessoas deixam de morrer, coisa que logo do outro lado da fronteira continua a acontecer com normalidade. Imaginação fulgurante, capaz de se colocar bem ao nível da do brilhantismo reflexivo do autor.

5. “Flores Negras para Michael Roddick”, de Daniel Vásquez Sallés (Ambar)
O romance de estreia de Daniel Vásquez Sallés, filho de Manuel Vásquez Montalbán. Michael Roddick, antigo agente ao serviço da República Federal da Alemanha, tem um pequeno restaurante em Barcelona, a meias com Elena, a filha adoptiva. Este cenário de aparente calmaria vai dar lugar a uma história de acção e ‘suspense’, a trazer à memória do protagonista, e não só, espiões de outros tempos. Isto depois do aparecimento de uma visita inesperada. Com alguns pormenores da tradução a rever numa futura edição, a história é absolutamente fascinante.


escolhas de ANTÓNIO MEGA FERREIRA

“O Deserto dos Tártaros”, Dino Buzzati (Cavalo de Ferro)
A reedição (em nova tradução) deste enorme clássico da narrativa “metafísica”, que antecipou em duas décadas grande parte da ficção pós-modernista, foi uma das minhas melhores leituras do ano. Poucos livros têm este raro condão de constantemente remeter para um território do indizível, onde se confundem ecos de Gracq (uma vida suspensa da ameaça invisível) e visões de Hugo Pratt – Giovanni Drogo é um Corto Maltese sem aventura.

“As Paisagens Propícias”, Ruy Duarte de Carvalho (Cotovia)
A obsessão propriamente literária (a dos papéis perdidos, encontrados, só parcialmente decifrados) é, como sempre na ficção do autor, o pano de fundo desta ampla panorâmica do território explorado, o sudoeste angolano. Porque o território, a sua transformação ao longo dos vinte anos que medeiam entre a independência angolana e a data suposta de escrita, é que é o protagonista deste discurso obliquamente autobiográfico (um exercício constantemente retomado de auto-ficção), em que um novo mistério – o do branco da Namíbia – alimenta a busca incessante do narrador, a sua errância dirigida, que, parece insinuá-lo, é o que verdadeiramente importa. Destes céus era Melville, destes espaços é Ruy Duarte de Carvalho. O melhor livro escrito em português que me foi dado ler em 2005.

“Diário Remendado”, Luiz Pacheco (Dom Quixote)
O “Diário Remendado” é um romance: o romance de uma vida vivida à beira da privação e da perdição. O seu protagonista é um tal Luiz Pacheco, um corpo pensante, que sai ou não sai da cama, que vai ou não vai ao médico, que se masturba ou não se masturba, que se lava ou não se lava, que vai ou não vai a Lisboa. O “Diário” é a sua única terapêutica, o único destino possível para a sua degenerescência, que ele próprio considera abominável: como tal, é de uma despudorada franqueza, a que não é alheio um gosto quase masoquista da auto-flagelação. Apesar disso, “sinceridade” e “autenticidade” são categorias obsoletas e inadequadas para aplicar a um objecto literário com a força e a dimensão do “Diário Remendado”.

“O Pequeno livro do Grande Terramoto”, Rui Tavares (Tinta-da-China)
O leitor poderá pensar que este livro excelente se lê “como um romance”. Puro engano: “O Pequeno Livro do Grande Terramoto” deve ser lido “como um ensaio”, mas um ensaio de onde nem a imaginação, nem o humor, nem o sentido do pormenor estão ausentes. É o livro onde se assiste à construção da “imagem” do Grande Terramoto como elemento fundador de uma “nova” Lisboa e de um “novo” Portugal, e como referência obrigatória da reflexão filosófica sobre as “grandes catástrofes”, no mundo ocidental.

“A Conspiração contra a América”, Philip Roth (Dom Quixote)
E se Charles Lindbergh, o conquistador solitário das vastidões aéreas, simpatizante nazi e representante da América branca e “biologicamente pura”, tivesse sido eleito Presidente dos Estados Unidos em 1941? Roth prossegue aqui, em exercício delirante de ficção sobre a História, a sua desmontagem dos mecanismos que fizeram da América o desastre cultural que permitiu Bush e o império. Em mergulho à retaguarda, prossegue aqui a inquirição que o levara a “Casei com um Comunista”, que era um romance sobre o maccarthysmo e os anos 50. Vigoroso, amargo, implacável, mas ao mesmo tempo irresistivelmente “funny”.

E ainda: “A Cortina” – Milan Kundera (Asa); “Cinzas do Norte” – Milton Hatoum (Cotovia); “A Linha da Beleza” – Alan Hollinghurst (Asa); “Exterminem todas as bestas” – Sven Lindqvist (Caminho); “Realidade e Ficção, uma biografia epistolar de Fernando Pessoa” - Manuela Parreira da Silva (Assírio e Alvim); e as duas traduções (José Bento e Miguel Serras Pereira) do “Dom Quixote” de Cervantes.



escolhas de ARTUR PORTELA

Eis os livros que, vistos deste Dezembro, foram talvez as minhas cinco melhores leituras de 2005:
1.- “Pensei que o meu Pai era Deus”, antologia organizada por Paul Auster (Asa)
Estrelas na noite do Senhor Bush.

2.- “Os dias contados”, de José Sasportes, com desenhos de Jorge Martins (Dom Quixote)
A cultura como absoluto respiro.

3.- “O Senhor Calvino”, de Gonçalo M. Tavares (Caminho)
O génio servido à colher de café. Robusto e arábico.

4.- “Suite Francesa”, de Irène Némirovsky (Dom Quixote)
Balzac às portas do Holocausto. Na melhor França cai a nódoa.
5.- “Renoir, meu Pai”, de Jean Renoir (Bizâncio)
Uma narrativa sumptuosa. E uma admirável tradução de Francisco Agarez.


escolhas de AUGUSTO M. SEABRA

“The Ethics of Identity”, Kwame Anthony Appiah (Princeton University Press)
Ganês de origem, formado em Cambridge e professor em Princeton, Appiah é um dos grandes pensadores contemporâneos. A originalidade da sua posição no debate entre “liberais” e “comunitários” é o retorno a Stuart Mill para postular as liberdades e direitos dos grupos minoritários, mas também a sua desconfiança das identidades fechadas, antes defendendo identidades globais e valores universais. Por isso não argumenta em termo de “multiculturalismo”, mas de “cosmopolitismo enraizado”, numa reflexão a prosseguir em “Cosmopolitanism: Ethics in a World of Strangers”, a publicar este mês.

“The Assassin’s Gate – America in Iraq”, George Packer (Farrar)
O mais importante livro político do ano nos Estados Unidos. Um jornalista da “New Yorker”, defensor da intervenção no Iraque, traça o quadro da estratégia neo-conservadora e da incrível inépcia na preparação e condução da ocupação, no fosso entre as considerações ideológicas e o choque do terreno.

“The Google Story”, David A. Vise (MacMillan)
“The Search – How Google and Its Rivals Rewrote The Rules Of Business and Transformed Our Culture”, John Batelle (Nicholas Brealey)
A confirmação da ascensão e mesmo hegemonia da Google foi um dos acontecimentos estruturantes do ano. Estes livros são as duas primeiras abordagens, mais descritivo o de Vise, editor de tecnologia do “Washington Post”, mais abrangente o de Batelle, um dos editors da “Wired”.

“Constituer l’Europe”, Bernard Stiegler (Galilée)
No ano do bloqueado processo de uma Constituição política para a União Europeia, um filósofo que colocou a técnica no centro das suas reflexões interroga-se sobre a possibilidade de uma nova organização das trocas simbólicas que permita a singularização das nações e do motivo europeu num além da ordem industrial da produção e consumo.

“A Cortina”, Milan Kundera (Asa)
Uma outra vez, na esteira de Musil e sobretudo de Hermann Broch, Kundera reafirma o romance, a arte, como modo de conhecimento, e também como memória privilegiada da Europa.

“A Ideia de Europa”, George Steiner (Gradiva)
“L’Infinito Viaggiare”, Claudio Magris (Mondadori) “A Europa foi e é percorrida a pé”, afirma Steiner e esse é um dos traços distintivos que assinala. E Magris prosssegue as crónicas dos seus périplos europeus, mesmo que no caso com algumas incursões alhures.


escolhas de CARLOS FIOLHAIS

“Ilíada” de Homero, tradução de Frederico Lourenço (Cotovia)
Quem disse que um clássico não pode ser moderno?

“A Conspiração contra a América”, Philip Roth (Dom Quixote)
História virtual: o que teria sido a América se em vez de Roosevelt tivesse sido eleito o pró-nazi Lindbergh?

“O Mal no Pensamento Moderno. Uma história alternativa da filosofia”, Susan Neiman (Gradiva)
O que tem a ver o 1 de Novembro de 1755 em Lisboa com o 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque? E os dois com a filosofia?

“Sobre a Mão e Outros Ensaios”, João Lobo Antunes (Gradiva)
Quem disse que o neurologista Lobo Antunes fica, na escrita, atrás do seu irmão psiquiatra e também escritor?

“O Cosmos de Einstein”, Michio Kaku (Gradiva)
Como Albert Einstein transformou a nossa concepção do espaço e do tempo? No ano de Einstein, alguém disse que ele não tinha razão?



escolhas de CRISTINA SILVA

“Sábado”, Ian McEwan (Gradiva)
Um livro onde a atmosfera do mundo actual extavasa ao longo dos acontecimentos de um dia. E onde, apesar de tudo, aquilo que é mais humano - o amor e o sonho evocado através da poesia - conseguem subsistir e mesmo vencer tudo o resto que é terrível.

“No Coração desta Terra” , J.M. Coetze (D. Quixote) Um livro terrível onde a prosa do autor, o tom com que as palavras vão cobrindo as personagens, faz mover as personagens do coração de uma fazenda na Africa do Sul para o coração dos sentimentos que podem transformar qualquer homem ou mulher em seres profundamente solitários.

“A Conspiração contra a América”, Philip Roth (D. Quixote)
Um livro que parte de um cenário hipotético, a derrota de Roosevelt e a vitória de um canditado presidencial anti-semita na América durante a segunda guerra mundial. Os factos políticos hipotéticos cruzam-se com a vivência de uma família judia americana onde a mestria da arte de contar do autor transmite vida às consequências da discriminação.

“Memórias das minhas putas tristes”, Gabriel García Márquez (D. Quixote)
Um livro que é um cântico à ternura e à esperança com que o desejo pode prolongar a própria vida.

“O Engate”, Nadine Gordimer (Texto Editora)
Um livro onde o turbilhão do amor e do mundo se fundem numa escrita límpida.


escolhas de EDUARDO PITTA


Poesia
1. “Sol a Sol”, Armando Silva Carvalho (Assírio & Alvim)
Nunca a dimensão ético-política de uma obra se confundiu com ranço ideológico. Isso mesmo prova “Sol a Sol”, última recolha de Armando Silva Carvalho, autor que assume a afirmação do corpo cívico à revelia de arregimentações identitárias. Feridos de “realidade acabrunhada”, refractários a qualquer conveniência, estes poemas trocam o passo àquele que desde a Grécia antiga foi “trazido de rastos como um estafeta / Às portas da metafísica”. Epítome de um poeta que desde 1965 não pára de surpreender.


2. “Os Poemas”, Konstandinos Kavafis. Trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis (Relógio d’Água)
Não é a primeira vez que Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis traduzem Kavafis. Em 1994 foram 25 poemas; em 2005, a partir da edição crítica de G. P. Savvidis, fizeram chegar à língua portuguesa todo o “corpus” canónico: 154 poemas. Conseguimento maior. Edição bilingue, prefácio (de Magalhães) esclarecedor, notas criteriosas. Indispensável.


3. “Os Pré-Rafaelitas”, VV.AA.Trad. Helena Barbas, (Assírio & Alvim)
Em Portugal, a Irmandade Pré-Rafaelita era uma referência vaga fora de círculos de iniciados. Agora, graças a Helena Barbas, temos os poemas de Dante Gabriel Rossetti, Elizabeth Eleonor Siddal, Christina Rossetti, William Morris, Algerdon Charles Swinburne, e também um texto alegórico de Simeon Solomon, vertidos em português de lei. Além do prefácio, as notas bibliográfias, as tábuas cronológicas e as excelentes sínteses biográficas fazem deste volume uma antologia absolutamente de cabeceira.


Ensaio
“Lusitana Praia”, Vasco Graça Moura (Asa)
Colectânea de ensaios de um celebrado poeta, tradutor e romancista. Camões e o ensino da língua como móbil de polémica? Nem mais. Vasco Graça Moura “vintage”.


Ficção
“A Conspiração Contra a América”, Philip Roth. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues (Dom Quixote)
Falamos de Philip Roth como falamos de Melville ou Nabokov. Os clássicos levam sempre vantagem... Pergunta óbvia: e se o “plot” (a trama anti-semita) fosse realidade? Se Lindbergh tivesse chegado a presidente? Neste, como nos vinte e tal títulos que ficaram para trás, ficção nunca se confunde com teoria. Importam os pormenores: cheiros, sons, sobressaltos. A “Conspiração Contra a América” está cheia deles. O busilis é que livros como este obnubilam tudo à sua volta.


Biografia
“Álvaro Cunhal. O Prisioneiro”, José Pacheco Pereira (Temas e Debates)
O terceiro volume da biografia política de Álvaro Cunhal, obra do historiador José Pacheco Pereira, suscita um problema sério, qual seja o de colocar alto a fasquia do biografismo português. Nenhuma cedência, de ordem semântica ou passional, afecta o escrutínio dos factos. É incómodo em certos círculos? Decerto que sim. Mas não se pode compreender a sociedade em que vivemos sem escarafunchar a realidade. Incontornável.


escolhas de FERNANDO PINTO DO AMARAL

Irei cingir-me a cinco escolhas (por ordem alfabética...) que mostram a diversidade do que se publicou em 2005, embora não haja propriamente uma hierarquia. Poderia, portanto, mencionar também os contos de Frederico Lourenço (“A Formosa Pintura do Mundo”, Cotovia), a confirmação da voz de Dulce Maria Cardoso (“Os Meus Sentimentos”, Asa), uma narrativa de contornos autobiográficos de Enrique Vila-Matas (“Paris Nunca se Acaba”, Teorema), a poesia de Armando Silva Carvalho (“Sol a Sol”, Assírio & Alvim) ou de Nuno Júdice (“Geometria Variável”, Dom Quixote) e ainda os novos romances de Agustina (“Doidos e Amantes”, Guimarães) e Saramago (“As Intermitências da Morte”, Caminho), entre tanta outra coisa que marcou o ano de 2005. Mas quando fazemos balanços como estes, a pergunta que fica é sempre a mesma: daqui a 50 ou a 100 anos quem se lembrará destes livros?

1 – “Anos 70 – Poemas Dispersos”, Alexandre O’ Neill (Assírio & Alvim)
Quase 20 anos depois da sua morte, esta surpreendente recolha de poemas da década de 70 dispersos em jornais vem-nos recordar algum do melhor O’ Neill, entre os agitados ecos de um PREC que o génio da sua escrita soube desmontar com uma criatividade e um sentido lúdico ainda hoje difíceis de igualar. E deixa-nos com mais vontade de ver publicada a sua biografia, escrita por Maria Antónia Oliveira, que virá a lume em 2006 na Dom Quixote.

2 – “D’ Este Viver Aqui Neste Papel Descripto”, António Lobo Antunes (Dom Quixote)
Por iniciativa de Maria José e Joana Lobo Antunes, publicou-se este belíssimo volume de “cartas da guerra” que o seu pai enviou de Angola entre 1971 e 1973, sob a forma de aerogramas por vezes fac-similados. Além de acompanhar como um sismógrafo quase quotidiano os desejos ou as angústias de um jovem apaixonado em quem já se sentia uma irreprimível pulsão para escrever, este conjunto de textos deu-me também um melancólico retrato de uma época que correspondeu à da minha infância.

3 – “Sábado”, Ian McEwan (Gradiva)
Partindo de uma história relativamente simples e sem peripécias demasiado rocambolescas, Ian McEwan situa o seu protagonista (um neurocirurgião londrino) no cerne de alguns dos grandes conflitos e dilemas éticos do nosso tempo, neste início do século XXI em que a eterna questão do bem e do mal surge reactualizada perante a ameaça do terrorismo e a maior ou menor tolerância das nossas sociedades.

4 – “Os Poemas”, Konstandinos Kavafis (Relógio d’ Água)
Corolário de um longo trabalho de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, este volume reúne em português o legado de alguém que soube captar com um subtil poder sugestivo a atmosfera de uma Alexandria cujas figuras mitológicas se cruzam com imagens da sua memória pessoal. Ciente da efémera beleza de um mundo decadente, a escrita de Kavafis integra o lastro do passado no seu presente, mesmo sabendo até que ponto esse passado permanece definitivamente irrecuperável.

5 – “Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves”, Vasco Graça Moura (Quetzal)
2005 deixou-nos aquele que talvez seja, desde há alguns anos, o melhor livro de poemas de Vasco Graça Moura, dividido em oito partes distintas e retomando as linhas essenciais do seu percurso: uma dimensão narrativa por vezes de grande fôlego; uma linguagem ora coloquial, ora carregada de referências culturais; um irreprimível diálogo com outras formas estéticas como a música ou as artes plásticas; e a insistente preocupação com os principais temas clássicos – tudo isto servido por uma oficina cuja maestria versificatória se tem apurado cada vez mais.


escolhas de FRANCISCO JOSÉ VIEGAS


Sim, escolher cinco livros de 2005 é o maior dos riscos e não vale a pena justificar, tanto mais que a lista seria totalmente diferente daqui a quinze dias. É a vantagem dos livros: mudam muito de estante.

“On Beauty”, Zadie Smith (Penguin)
Zadie Smith é a autora de “Dentes Brancos” (Dom Quixote), de que gostei muito; este “On Beauty” é uma comédia fantástica sobre celebridades literárias e outros idiotas actuais que andam nas universidades e nas colunas de opinião. Se escolhesse ficção portuguesa, falaria nos livros de Rodrigo Guedes de Carvalho, de Fernando Campos, de Dulce Cardoso ou de Agustina Bessa-Luís.
“O Mal no Pensamento Moderno”, Susan Neiman (Gradiva)
Além de “A Ideia de Europa”, de George Steiner, do terceiro volume da biografia de Cunhal, de José Pacheco Pereira, de Isaiah Berlin (“Rousseau e Outros Cinco Inimigos da Liberdade”) e certamente do de Rui Tavares, “O Pequeno Livro do Grande Terramoto”, este foi o ensaio que mais prazer me deu ler. É uma reconstrução da história do pensamento à beira da catástrofe.

“Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves”, Vasco Graça Moura (Quetzal)
A poesia de VGM tem sido menosprezada por razões que não têm nada a ver com a literatura, e isso é uma enorme injustiça. Escolho-o como um dos livros do ano, o painel onde VGM prolonga aquela melancolia que nunca fica inteiramente romântica, cheia de ironia, de rigor e de boas sílabas. Isto num ano em que a poesia portuguesa nos deu novos livros de Nuno Júdice (“Geometria Variável”), de Tolentino Mendonça, Armando Silva Carvalho, Hélder Moura Pereira ou Isabel de Sá.

“A Conspiração Contra a América”, Philip Roth (Dom Quixote)
É o meu Nobel permanente desde que li “O Complexo de Portnoy”, “Pastoral Americana”, “Operação Shylock” e “Teatro de Shabat”. Se há romancista americano que nunca parou de surpreender e de ser livre é Roth. Gosto das suas obsessões e da tensão permanente em que vive toda a gente em redor dos seus livros – personagens e leitores. Além do mais, “Conspiração Contra a América” é o retrato de ameaça sobre a liberdade e uma releitura da história americana.
“Paris Nunca se Acaba”, Enrique Vila-Matas (Teorema)
Vila-Matas é um herói da literatura europeia de hoje, como poderia ser Sebald (“Os Emigrantes”), por exemplo. Acho que o escolho como uma homenagem à própria literatura e à sua obra, mais do que a Paris (de que não gosto).




escolhas de FREDERICO LOURENÇO

“Satyricon”, Petrónio. Tradução de Delfim Leão (Cotovia)
O mais prodigioso texto de ficção em prosa da Antiguidade, um romance “antigo” que ainda hoje nos parece pós-moderno. Os solavancos, as descontinuidades, a emotividade amarga, o brilhantismo retórico. Sexo, sexo, sexo. Admirável tradução de Delfim Leão.

“Ensaios sobre Eurípides”, Maria de Fátima Sousa e Silva (Cotovia)
Fátima Silva é professora catedrática da Universidade de Coimbra e uma helenista de rara e sólida competência. Esta leitura de Eurípides, o mais escorragadio e inabordável dos poetas gregos, revela-nos uma grande ensaísta, que escreve com cristalina limpidez, fina sensibilidade estética e exemplar pendor pedagógico.

“Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves”, Vasco Graça Moura (Quetzal)
Sentarmo-nos a ler poemas de Graça Moura é prazer intelectual em estado puro. Não é só o tão apregoado virtuosismo: é o milagre de tanta erudição, tanta cultura e tantas referências nunca redundarem em pedantismo. Na sua destreza técnica e na sua “Hochkultur”, VGM proporciona o prazer imediato e intemporal de na roseira despojada de ontem vermos hoje flor nova, porém flor de sempre, na máxima perfeição da sua simplicidade.

“Falsa Partida”, Fernando Luís Sampaio (Assírio & Alvim)
Uma surpresa, um encanto, uma comoção, uma perplexidade. Um livro lindíssimo.

“Poemas de Gastão Cruz” ditos por Luís Miguel Cintra (Assírio & Alvim)
Luís Miguel Cintra a ler poesia lembra-me sempre a célebre frase que Hindemith disse a Dietrich Fischer-Dieskau: “você não é um cantor, é um bardo”. A voz divina dos palcos e dos ecrãs não perde nada da sua beleza em CD, iluminando os poemas de Gastão Cruz (excelente selecção!) com o calor que por vezes pode faltar na frieza da página impressa. Arrebatador.



escolhas de GASTÃO CRUZ


“Génese”, António Ramos Rosa (Roma Editora)
Causa-me certa perplexidade que alguns dos praticantes de uma residual e errática crítica de poesia complacentemente se ocupem no elogio de livros em que não se vislumbra qualquer vestígio de invenção poética, últimas novidades de uma escrita básica, em que as palavras parecem destituídas daquele “peso” de que falava Carlos de Oliveira, ou em que essa invenção surge de forma “disparatada”, e ignorem obras maiores da poesia que hoje (ainda) se escreve em Portugal, como “Génese” de António Ramos Rosa. Talvez haja quem considere que esta poesia já não interessa. Ela não fala, na verdade, de bares nem de centros comerciais, temas em voga num sector poético, hoje em dia muito apreciado. O tema é a própria poesia (não diz Wallace Stevens “Poetry is the subject of the poem”?) e o seu “diálogo com o universo”; a partir dele construiu Ramos Rosa um livro (dois, na verdade, no mesmo volume: “Génese” e “Constelações”) que é, não apenas um dos mais notáveis saídos em Portugal em 2005, mas também um dos mais altos momentos da sua vastíssima obra.


“Sol a Sol”, Armando Silva Carvalho (Assírio & Alvim)
A poesia de Armando Silva Carvalho estabeleceu, desde o início, um equilíbrio entre uma intensa relação com o mundo real e a criação de uma linguagem cuja rugosidade e poder imaginativo profundamente o transfigura. Neste livro, de cumplicidade explícita com outras poesias, sobretudo a de Fiama, Armando assume a sua fidelidade à revolução poética dos anos 60 e reafirma-se como um dos grandes poetas portugueses do nosso tempo.


“Falsa Partida”, Fernando Luís Sampaio (Assírio & Alvim)
“Orbe”, Paulo Teixeira (Caminho)
Depois de “Escadas de Incêndio” (2000), Fernando Luís Sampaio regressa agora com “Falsa Partida”, onde consolida o seu lugar destacado entre os principais poetas revelados na década de 80. Com um estilo forte e amadurecido, que volta a provar como a atenção ao quotidiano e mesmo ao “fait divers” não são incompatíveis com a elaboração da linguagem e a capacidade de surpreender o leitor, “Falsa Partida” é uma das obras mais marcadamente pessoais e originais surgidas na poesia portuguesa recente.
Também Paulo Teixeira, outro dos mais representativos poetas da mesma geração, retoma em “Orbe” a linha de grande rigor e exigência da sua escrita.

“A Ordem do Mundo”, Rui Coias (Quasi)
Tendo-se estreado em 2000, com “A Função do Geógrafo”, Rui Coias logo se distinguiu, entre os poetas da sua geração, como um dos mais capazes de criar um mundo próprio. “A Ordem do Mundo” vem confirmar a importância da sua poesia, onde uma impressionante capacidade de invenção e estruturação de uma linguagem se desenvolve em versos de ampla respiração, povoados de poderosas imagens.

“Ilíada”, Homero. Tradução de Frederico Lourenço (Cotovia)
Depois da “Odisseia”, Frederico Lourenço realizou agora a tradução da “Ilíada”, mais um grandioso empreendimento que, de novo, integra num português poético qualificado e fluente um dos textos matriciais da nossa tradição literária.


escolhas de GONÇALO M. TAVARES

“Os Emigrantes”, W. G. Sebald (Teorema)
Quatro histórias de homens fora do seu sítio e fora do tempo; a última história concentra a tristeza irreversível que se instala ao longo da leitura. A degradação é sempre a força maior: “(...) no fundo, Manchester estava igual ao que era quando lá tinha vivido um quarto de século antes. O que se havia construído para obviar ao processo de declínio generalizado estava já por sua vez degradado (...)”

“Jakob Von Gunten”, Robert Walser (Relógio d’ Água)
O livro mais desestabilizador de Walser. O Instituto Benjamenta é uma escola estranha, perturbadora, mas ao mesmo tempo atraente - “como já disse, há falta de professores, o que significa que os senhores docentes ou educadores estão a dormir, ou mortos, ou a fingir-se de mortos, ou mesmo fossilizados, em todo o caso não sabemos nada deles.”
Jakob Von Gunten por vezes come “as refeições mais tolas” com um enorme entusiasmo, “como num conto de fadas e já não como uma pessoa de cultura numa era de cultura.”

“O Deserto dos Tártaros”, Dino Buzzati (Cavalo de Ferro)
Um dos romances importantes do século XX: alguém que espera a vida inteira pela guerra numa fortaleza obscura, repleta de rituais e sujeita à mais pormenorizada disciplina. Quando finalmente parece ter chegado o momento do conflito, Drogo, o protagonista, já doente, é afastado da Fortaleza remota como quem é afastado do centro do mundo. Também de Dino Buzzati “Os Sete Mensageiros” (Cavalo de Ferro) – talvez até, dos dois, o meu preferido. Contos intrigantes, alguns que permanecem suspensos, sem resolução, sempre sobriamente bonitos. O conto que dá título ao livro (“Sete mensageiros”) é um invulgar exercício narrativo sobre o espaço, o tempo, a distância e a memória. Um outro - “Sete andares” - apresenta uma estrutura semelhante (o número sete outra vez), mas aplicada numa linha vertical, estabelecendo uma relação entre arquitectura e doença; à medida que se descia no edifício surgiam os doentes mais graves, colocados em cada piso por via de decisões médicas e administrativas (numa confusão assustadora entre estas duas categorias). No primeiro andar, o mais baixo, estavam os moribundos. O conto relata a história de Giuseppe Corte que chega com “um pouco de febre” à “famosa casa de saúde”. Entra para o 7º andar e quase sem perceber porquê, vai descendo, descendo...

“Paris Nunca se Acaba”, Enrique Vila-Matas (Teorema)
Livro inclassificável, que dentro de si próprio coloca a questão: “Sou uma conferência ou um romance?” (questão que se põe também em relação ao excelente “Elizabeth Costello” de Coetzee). Uma autobiografia, em parte ficcional, de alguém que na juventude queria “estudar para Hemingway”; o pai do autor/narrador no entanto não estava de acordo: “‘Isso não se estuda em lado nenhum, não é nenhuma carreira universitária’, disse-me, e dias depois matriculava-me em Direito.”
Relato de um jovem escritor que saiu de Paris a saber “escrever à máquina”.

“Antologia”, Wallace Stevens. Trad. de Maria Andresen de Sousa (Relógio d’ Água): “No meu quarto, o mundo está para além do meu entendimento/ Mas quando caminho vejo que ele consiste em três ou quatro montes e uma nuvem”.
É de destacar também o trabalho das editoras Vendaval, Averno, & etc. E para além dos escritores portugueses conhecidos e consagrados gostaria de referir o nome de Alberto Velho Nogueira e os seus livros saídos na editora Homem à Janela – os livros encontram-se em algumas raras livrarias (por exemplo, na Assírio do King triplex em Lisboa). É um autor não muito fácil, mas que justifica uma leitura atenta e mais alargada.



escolhas de HELENA BUESCU

“Contos da Imagem”, Fiama Hasse Pais Brandão (Assírio & Alvim)
Três contos em que a poesia de Fiama pulsa e se dá a ler, em conversa com toda a sua obra poética: é pela imagem que tudo passa aqui, o registo do presente como a invenção do possível. Como sempre, com todos os títulos de Fiama, um marco para a nossa leitura.

“D’Este Viver aqui neste papel descripto. Cartas da Guerra”, António Lobo Antunes (Dom Quixote)
Cartas de amor em cartas de guerra, duas tão diferentes formas que aqui se tocam e confinam. A fragilidade destas duas experiências humanas, de que pode nascer a narrativa esburacada de como podemos viver no limite, para além dele.

“Conspiração contra a América”, Philip Roth (Dom Quixote)
Uma história sobre o crescimento do medo e a forma incontrolável como pode insidiosamente manchar e minar uma sociedade e, nela, todas as relações pessoais e de grupo. Fascismo na América? Uma magnífica fábula... sobre o que hoje é o nosso mundo, feito de tecidos antigos mais do que gostamos às vezes de admitir.

“Ilíada”, Homero. Trad. Frederico Lourenço (Cotovia)
Leia-se por exemplo com Philip Roth: a cólera de Aquiles é mais do que o lugar de onde parte a Ilíada - é paixão sobre que a nossa civilização, a nossa literatura e o nosso imaginário se fundam e a que sempre regressam. Esta tradução integral do poema homérico, pela primeira vez publicada em Portugal, é um acontecimento maior de 2005.

“Bastardia”, Hélia Correia (Relógio d’Água)
Mais uma notável narrativa de Hélia Correia, sobre os desabrigados do mundo e a forma como, apesar de tudo, nele vão navegando. Leia-se com “Lillias Fraser”, da mesma autora, e 2005 fará, apesar de tudo, bastante mais sentido.

escolhas de HÉLIA CORREIA

Este ano homenageio os mediadores que nos trazem aquilo que, de outro modo, seria inalcançável para nós. Estão entre eles, no meu caso, os tradutores de línguas: grego, antigo e moderno, alemão e latim. Estão entre eles os estudiosos. E estão também entre eles esses raros, os que sabem trocar com uma obra o diálogo intenso do fulgor.
Assim, escolho:
A “Ilíada”, de Homero, em tradução de Frederico Lourenço, ed. Cotovia.
A “Odisseia”, de Homero, em tradução de Frederico Lourenço, adaptada aos jovens, ed. Cotovia.
“Helena”, de Eurípides, em tradução de José Ribeiro Ferreira, ed. Festea Tema Clássico- Coimbra (É, creio, a primeira tradução para português).
“Os Poemas” de Konstandinos Kavafis, em tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, ed. Relógio d’Água.
“As Perturbações do Pupilo Törless”, de Musil, em tradução de João Barrento, ed. Dom Quixote.
“Satyricon”, de Petrónio, em tradução de Delfim Leão, ed. Cotovia (Primeira tradução para português).
“Odeio E Amo”, poemas de Catulo, em tradução de José Ribeiro Ferreira, ed. Minerva, Coimbra.
“Ensaios sobre Eurípides”, de Maria de Fátima Sousa e Silva, ed. Cotovia.
“Finita”, de Maria Gabriela Llansol, reedição com posfácio de Augusto Joaquim e fotografias de Duarte Belo, ed. Assírio e Alvim.


escolhas de INÊS PEDROSA

Ainda não foi em 2005 que a edição portuguesa ousou investir no ensaio, pelo que continuei a ler Zygmunt Bauman em tradução brasileira e Christopher Hitchens no inglês original. Mas o romance português mostrou o poder e a variedade das suas vozes: para além da alucinante experiência de “Jerusalém”, obra de maturidade de Gonçalo M. Tavares, assistimos ao sólido regresso de Rodrigo Guedes de Carvalho com o romance de um homem e de uma mulher escrito no fio de navalha da solidão, redescobrimos o Portugal desmoronado de 1755 através da imaginação de Miguel Real e atingimos o plano da morte intermitente numa parábola vigorosa de José Saramago. Mas pedem-me apenas 5 escolhas, de modo que selecciono os 5 livros portugueses mais feministas do ano. A palavra “feminismo” é composta por uma mistura de 5 ingredientes principais: inteligência, futurismo, estilo, independência, alegria. São eles:

“Dicionário de Crítica Feminista”, organização de Ana Gabriela Macedo e Ana Luísa Amaral (Afrontamento)
Obra absolutamente pioneira em Portugal, que apresenta, interroga e descodifica, numa escrita simultaneamente rigorosa e fluente, a História, os temas e o vocabulário do pensamento feminista.

“Doidos e Amantes”, Agustina Bessa-Luís (Guimarães) Um romance que, para além de nos oferecer o habitual doutoramento em Natureza Humana, narrado com a graça e a caótica beleza de que só Agustina é capaz, transforma a história (verdadeira) de uma vítima do poder patriarcal numa fábula visceralmente feminista, demonstrando que uma mulher não precisa de ser particularmente nova, nem inteligente, nem nada de especial, para se emancipar e escandalizar uma sociedade inteira.

“Longe de Manaus”, Francisco José Viegas (Asa)
A língua portuguesa reencontra a sua outra metade e torna-se uma perfeita hermafrodita, transando transatlanticamente, corpo a corpo, com grande garbo. Entre mortos e feridos, identidades trocadas e paisagens perdidas, as dedadas do amor quotidiano resistem e pintam um mundo de mulheres e homens infinitamente livres.

“A Palavra Mágica”, Rui Zink (D. Quixote)
O humor cáustico de Zink é a anestesia que impede a morte dos valores enquanto decorre a delicada operação desta escrita, que não tem medo de ir até ao osso das palavras, nem de devolver a cor ao sangue.

“Geometria Variável”, Nuno Júdice (D. Quixote)
“o poema corresponde à luz/ do sol, com a sua plena revelação do absoluto,/ sem provocar a cegueira”.


escolhas de JAIME ROCHA

A minha escolha vai para a Poesia. 2005 foi um ano fértil, com uma colheita de grande qualidade, quer de autores, quer de tradutores. Estes são alguns dos títulos que me ajudaram a enriquecer os dias.
“O Livro das Imagens” – Rainer Maria Rilke (Trad. de Maria João Costa Pereira), Relógio D’Água
“Ilíada” – Homero (Trad. de Frederico Lourenço), Cotovia
“Os Poemas” – Konstandinos Kavafis (Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Protsinos), Relógio D’Água
“Génese” – António Ramos Rosa, Roma Editora
“Lavra e Pousio” – João Rui de Sousa, Dom Quixote
“Poemas” – Óscar Wilde (Trad. de Margarida Vale de Gato), Relógio D’Água
“Requiem” – Jorge Gomes Miranda, Assírio & Alvim
“Longe da Aldeia” – Rui Pires Cabral, Averno
“Poemas” – Pier Paolo Pasolini (Trad. de Maria Jorge Pilar de Figueiredo), Assírio & Alvim
“O Livro das Quedas” – Casimiro de Brito, Roma Editora
“Chão de Vespas” – José Carlos Soares, Ed. do Autor
“Poesia em Viagem” – Blaise Cendrars (Trad. de Liberto Cruz), Assírio & Alvim
“Máquina de Relâmpagos” – Jorge Velhote, com fotos de João Paulo Sotto Mayor, Edições Afrontamento
“Poesias” – Stéphane Mallarmé (Trad. de José Augusto Seabra), Assírio & Alvim

escolhas de JOÃO BARRENTO

“Les paradisiaques” e “Sordidissimes” (vols. IV e V de “Le dernier royaume”), Pascal Quignard (Grasset, Paris)
Pascal Quignard é um escritor de fragmentos, autor de culto e solitário por opção. Começou a publicar em 2002 uma série de (últimos?) livros inclassificáveis com o título genérico “Le dernier royaume”, iniciada com “As Sombras Errantes”, o único editado em Portugal. Em 2005 sairam os volumes IV e V, repositório de experiências, leituras, lugares e memórias que recuperam “a voz do perdido”, anotações de um leitor compulsivo, dos mais consequentes, desarmantes, por vezes desesperantes. Sempre luminoso, muitas vezes ofuscante, a sua escrita cria leitores “medusados”, dependentes, enfeitiçados por palavras-sésamo.


“Finita”, Maria Gabriela Llansol (Assírio & Alvim)
É o segundo diário de Maria Gabriela Llansol, editado pela primeira vez em 1987, mas que agora reapareceu em segunda edição e em novo formato, acompanhado de imagens e de pensamento, as fotografias de Duarte Belo e o posfácio de Augusto Joaquim. O que é novo na nova edição de “Finita” é esta constatação, que quem conheça o diário facilmente faz: as fotografias abrem, com especial sensibilidade e precisão, a imaginação a figuras determinantes do “espaço Llansol”, ampliando-as através do inevitável corte operado no real (e no fluxo do texto onde elas vivem) pela objectiva do fotógrafo. A fotografia torna-se agora mais um instrumento de acesso às “dobras do mundo” na busca do mútuo, o cerne da obra de Llansol.

“Os Emigrantes”, de W. G. Sebald. Trad. Telma Costa (Teorema)
Segundo romance editado em Portugal (o primeiro foi “Austerlitz”), de um dos mais singulares autores de expressão alemã do século XX, emigrado muito cedo para Inglaterra, onde viveu e morreu. Trabalho sobre a memória pessoal e histórica em livros híbridos, meio ficcionais, meio biográficos e documentais, escritos com um sentido apuradíssimo do estilo, o que explica o seu tom talvez “démodé” e melancólico, entre a novela gótica e as parábolas kafkianas, com um virtuosismo que nos faz recuar até Proust e Nabokov. Uma escrita fora deste tempo, e que fará muito bem a este tempo.


“A Flor dos Terramotos”, Manuel de Freitas (Averno)
Último livro de um poeta em cuja obra vivência e escrita entram em consonância de forma consequente. A poesia não é aqui uma questão de “escola”, de estilo ou de forma, mas uma questão de ética – de uma ética da imanência guiada por um princípio de coerência e justeza. Apesar de toda a carga de pura contingência que se abate sobre cada poema, pratica-se nesta poesia uma aprendizagem, não do incerto e do vago, como a conhecemos das nebulosas elegias de alguns poetas “neo-melancólicos” da década passada, mas daquilo que temos de mais certo, a grande Morte que não se conhece, no meio das incontáveis e concretas encenações das pequenas mortes diárias.

“Aos Queridos Mortos”, Durs Grünbein. Trad. Fernando Matos de Oliveira (Angelus Novus)
Suicídios, acidentes, mortes estranhas e violentas, livres e provocadas: o mundo é uma grande feira onde se exibem as mais bizarras formas da morte, e as páginas dos jornais um manancial inesgotável de histórias e de matéria para epitáfios poéticos. De originais “epitáfios” se trata, de facto, no primeiro livro (mas não em absoluto dos primeiros poemas) publicado em Portugal do mais festejado e traduzido poeta alemão da última geração. Sobre o autor, visto como “enfant terrible” da poesia alemã dos anos noventa, o excelente posfácio de Fernando Matos de Oliveira diz tudo o que importa saber, e muito mais do que isso.

E ainda:
“O Livro das Quedas”, Casimiro de Brito (Roma Editora)
Inaugurou, com Ramos Rosa, uma nova colecção de poesia (“Sopro”), e é a síntese perfeita da poesia do autor.

“Hominescência”, “O Incandescente” e “Ramos”, Michel Serres (Instituto Piaget)
Trilogia fundamental na obra mais recente de um autor que busca as raízes do humano numa “cosmogénese” que reinscreve a história humana na do universo, uma “Grande Narrativa” comparada com a qual a História tradicional representa apenas uma minúscula película de tempo.


escolhas de JOÃO LOBO ANTUNES

“Acentos”, Fernando Gil (Imprensa Nacional Casa da Moeda)
Uma colectânea de ensaios de um pensador original e indispensável.

“Sábado”, Ian McEwan (Gradiva)
Um romance que se lê de um fôlego.

“Postwar – A history of Europe since 1945”, Tony Judt (William Heinemann)
Um “tour de force” de um dos historiadores políticos mais lúcidos do nosso tempo.

“A ideia da Europa”, George Steiner (Gradiva)
Um ensaio breve, escrito com comovente ternura e compreensível nostalgia.

“Vozes da Poesia Europeia”, tradução de poemas David Mourão Ferreira (Colóquio Letras)
Três volumes preciosos que ilustram bem como nem sempre tradução é traição.


escolhas de JORGE DIAS DE DEUS


“Anaconda”, Horácio Quiroga (Ed. Cavalo de Ferro)
Depois de “Contos de Amor, Loucura e Morte”, e de “Contos da Selva”, surgiu-nos em 2005 a série “Anaconda”. Quiroga é, como sempre, fabuloso, fantástico, ecológico, moralizante, dramático, humano e muito mais. Um grande contista uruguaio, de vida breve e agitada, quase desconhecido entre nós, do começo do século XX.

“Picasso, La Passion du Dessin”, Dominique Dupuis-Labbé, e outros (Ed. Reunion des Musées Nationaux)
É o livro que acompanha a exposição de desenhos de Picasso no museu Picasso de Paris: livro e exposição notáveis! Entre tudo o que impressiona, o que impressiona mais é, talvez, a colecção de estudos para preparação da estátua “ L’ homme au mouton” (“O homem do carneiro”), que, segundo Picasso, foi feita numa tarde, após meses de esgotantes estudos. São esses desenhos que explicitam a estátua. Do período da segunda Guerra e da Ocupação, a estátua é um grito estrangulado de esperança.

“Álvaro Cunhal, Uma biografia Política”, vol.III, José Pacheco Pereira (Ed. Temas e Debates)
O herói encontra-se aprisionado nas masmorras fascistas, mas a saga, ou melhor, a luta, continua. Os tempos são difíceis, a guerra fria avança, o isolamento e a desunião nas forças oposicionistas faz prever o pior - embora no fim tudo acabe em bem, com a grande fuga de Peniche. Fica registada a arte de Cunhal: na escrita, no desenho, na pintura.

“Escritos Sobre o Terramoto de Lisboa”, Immanuel Kant (Ed. Almedina)
Como é que Deus permitiu tal desgraça? Essa foi a grande pergunta que ficou sem grande resposta. Mas Kant não foi por aí, ele seguiu os fios da pesquiza científica e introduziu modelos de base física para explicar o terramoto. Tentou pois ajudar-nos a viver melhor com uma natureza que não subjugamos. A não perder o prefácio de Wolfgang Breidert e o posfácio de João Fonseca.


“O Universo, a nossa Casa”, Stuart Kauffman (Ed. Bizâncio)
Dez anos demorou este livro a vir de Santa Fé, nos Estados Unidos, até nós. Ainda vem a tempo. Querendo ir além do que Darwin disse, o autor trata da emergência e do aparecimento expontâneo da ordem que está subjacente à Vida em todas as suas variantes. É a teoria da complexidade explicada a toda a gente.



escolhas de JOSÉ MIGUEL SILVA

Num ano de relativa desatenção ao mercado editorial português, é-me impossível sequer a veleidade de listar algo como “os melhores” livros de 2005. Limitar-me-ei, pois, a escolher algumas das obras que especialmente me seduziram.
“Longe da Aldeia” traz-nos Rui Pires Cabral no seu melhor, o desencanto de tudo, num mundo em desconcerto e onde apenas a “inútil beleza” dos resíduos humanos, urbanos, vai permitindo responder afirmativamente a quem pergunta, com pesar, se ainda “há uma saída?”
Por similar vereda, tingida por irredutível mas terno desespero, a voz de Manuel de Freitas prossegue em “A Flor dos Terramotos” o seu rol de agravados, retratando uma Lisboa de feios, pobres e velhos, feridos de morte; num desmentido lançado aos optimistas do rendimento máximo e a todos os que acreditam que fechando os olhos se concerta a esperança.
Também de morte nos fala “Requiem” de Jorge Gomes Miranda, um poeta que sempre teve na família um dos seus temas de eleição. Nomear os nossos mortos é restituir-lhes um pouco do amor que nos deram; e a poesia sempre teve nesse desígnio uma das suas mais fundas razões de ser. Num registo ora mais lírico, ora mas prosaico, o autor compõe neste livro um expressivo retrato da falta, do abandono. Porque “só as lágrimas falam verdade”.
Como diria Clint Eastwood, “There are two kind of poets in this world, my friend”, os que não vêem mal nenhum, e os que não conseguem desviar os olhos. Estes são os que aprenderam a colocar-se no lugar do outro. É o que faz Alberto Pimenta em “Marthiya de Abdel Hamid”. O outro, aqui, é o povo iraquiano espezinhado pelas botas do bem. Umas botas sujas de cimento, que nada sabem da terra nem da “troca de pássaros/no centro da cidade”.
Outro dos momentos por que 2005 merecerá ser recordado é a tradução integral de “Os Poemas” de Kavafis, feita por Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. O grego de Alexandria, poeta que melhor soube dialogar com a história e com a memória do desejo, passa agora a ter residência fixa na poesia portuguesa.
Num povo sério, timorato e complacente como o nosso, o humor raramente vai além da chalaça torpe e rancorosa, reaccionária fiscalização de todas as diferenças. Mas há também quem saiba rir de si próprio, sem medo de perder a compostura. Em “Memorias de um Craque”, Fernando Assis Pacheco ergue breves episódios da sua infância à dimensão de um épico burlesco, pleno de humor e de inventividade verbal.
Quando as cidades portuguesas tinham ainda ruas, havia nessas ruas casas simples, harmoniosas, funcionais. Com o advento da sociedade de consumo, a pobreza que construíra essas casas deu por si cheia de vergonha, apeteceu-lhe fugir. Mas em vez de fugir foi-se espiritualizando, até ser quase só “cosa mentale”. Emigrou, enfim, para o cérebro dos portugueses. Só assim se explica a sanha com que entes públicos e privados se empenham, desde há trinta anos, em destruir a mais alta manifestação da cultura portuguesa: a arquitectura popular. Quando tudo estiver definitivamente arrasado, restar-nos-á, por sorte, chorar sobre as páginas de “Arquitectura Tradicional Portuguesa” de Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, reeditado em 2005.
De casas (ainda que assombradas) cuidam os ingleses. Numa dessas casas ao pé d’ “O Mar, o Mar”, instalou Iris Murdoch um divertido teatro de fantasmas que tem por centro Ch. Arrowby, um egotista, encenador fugido aos palcos e apostado em escrever as suas memórias e aprender a ser bom. Não consegue uma coisa nem outra, mas o seu falhanço é magistral e representa um dos cumes do romance inglês.
No âmbito dos estudos literários, merecem-me especial destaque “Ulisses e a Odisseia” de Pietro Citati e “Sobre Cultura e Literatura Britânicas” de Jorge de Sena.




escolhas de JOSÉ SASPORTES

Artur Portela, “As noivas de S.Bento” (D.Quixote)
Um romance subtilíssimo em que Artur Portela inventa os meandros da mente verdadeiramente tortuosa de um Salazar quase enamorado.
Henrique Dinis da Gama, “Baixa Pombalina ? a luz obscura do iluminismo” (Caminho)
Num ano em que se celebrou o grande terramoto e a reconstrução pombalina, um belo livro e um depoimento dissonante e refrescante de um arquitecto-fotógrafo que questiona a bondade das escolhas urbanísticas e
arquitectónicas da equipe do Marquês.
Machado de Assis, “Memórias póstumas de Brás Cubas” (Livros Cotovia)
Às vezes o leitor chega atrasado, mas, para mim, o prazer de descobrir só agora este romance moderno de Machado de Assis tem o sabor de uma revelação.

Georges Banu, “Nocturnes ? peindre la nuit, jouer dans le noir” (Biro editeur)
Na sequência de “Le rouge et or”, de “Le rideau ou la félure du monde” e de “L’homme de dos” , livros que exploram de forma original a nossa relação com o espaço teatral, Georges Banu dá nova luz à representação da noite na pintura e no teatro , ensinando-nos a avançar na sombra.
Flavia Pappacena, “ Il trattato di danza di Carlo Blasis, 1820-1830”(inclui texto em inglês), (Libreria Musicale Italiana)
Uma edição e uma apresentação do tratado fundador do bailado romântico, em que, pela primeira vez, se dissecam de um modo muito documentado as étapas que levaram à formulação de uma nova técnica de dança."

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