1.12.05

O 70º aniversário da mortede Pessoa no "Diário de Notícias"

"Pessoa", por Ana Marques Gastão

"Tudo em Fernando Pessoa - cujos 70 anos da morte hoje decorrem - é fragmento, não propriamente caos, mas texto em dúvida, incompletude. Pessoa, ele mesmo, "não existe, propriamente falando", tudo nele é (des)construção, descentramento. Álvaro de Campos, um dos heterónimos, tinha razão, e usar as suas palavras é adequado no momento da publicação da obra ortónima em três volumes, dois a sair em Dezembro (1902-1917 e 1918-1930) e um terceiro (1931-1935), em 2006, numa edição criteriosa de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine (Assírio & Alvim).

Cumpre-se assim o desejo dos amantes e estudiosos de Pessoa (cuja obra entra hoje no domínio público) que passam a dispor do "corpus inteiro da sua poesia ortónima em português, pelo menos a não atribuída aos heterónimos e a outras personalidades."Mas - refere-se no posfácio do terceiro volume - "a sede de uma poesia toda ou de uma poesia completa continuará a não poder ver--se inteiramente satisfeita", dada a dimensão inacabada e múltipla da obra literária pessoana.

A edição reúne os poemas éditos em português assinados com o nome de Fernando Pessoa e aqueles cuja publicação foi fruto de intervenção de diversos investigadores (entre 1935 e 2005). Incluem-se ainda 234 inéditos no primeiro tomo, quase todos escritos entre 1902 e 1915, datas não contempladas, até agora, pela edição crítica da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, dirigida por Ivo Castro; oito ou nove no segundo; alguns mais no terceiro. A apresentação segue uma ordem cronológica.

Quanto aos primeiros, explica Manuela Parreira da Silva - professora da área de tradução da Universidade Nova de Lisboa e pertencente ao grupo de investigação da obra pessoana, dirigido por Teresa Rita Lopes - reproduziu-se o texto publicado pelo autor em revistas e outras publicações, excluindo a Mensagem; relativamente aos segundos, foram objecto de uma refixação (novas propostas de leitura, articulação de estrofes ou redefinição do corpo do poema), a partir dos documentos autógrafos existentes no espólio da Biblioteca Nacional. Tendo em conta que as sucessivas reimpressões da obra estão cheias de gralhas e erros (atribuição de autoria, data, etc.), tentou conferir-se os textos com os originais sempre que encontrados, recusando uma "leitura impressionista", que já conduziu a resultados desrazoáveis, apoiando-se no sentido. É a falta deste, numa primeira abordagem, a alertar, muitas vezes, para a necessidade de procura de outros caminhos.

Há nesta edição novos poemas, uns mais relevantes do que outros (o que contraria a ideia de que toda a obra de qualidade teria sido publicada em vida) e novas leituras de poemas anteriormente publicados, o que, segundo Manuela Parreira da Silva, "nem sempre é bem aceite por alguns pessoanos". Surgem, por outro lado, casos em que se considera serem dois poemas o que antes foi entendido como um e vice-versa.

A releitura crítica permitiu, comenta a investigadora, questionar a justeza de certas atribuições de autoria "Este é um dos problemas principais do estudioso pessoano, o que torna discutível a inclusão no cânone de poemas recentemente editados e atribuídos a Pessoa na Edição Crítica."

"Os inéditos, esses, são de diferentes ordem e valor, dos poemas de juventude aos do poeta maduro. Esta edição, que pode funcionar como um historial dando conta da evolução do autor, abrange o Pessoa mesmo antes da existência lisboeta e portuguesa, coincidindo com a transição da adolescência para a juventude. Por ela passam ainda a descoberta da sexualidade, a luta interior - uma constante da sua poesia -, o criador já seguro e o dos tempos anteriores à morte.

A poesia ortónima, diz Manuela Parreira da Silva, segue, regra geral, características formais mais tradicionais. Quanto à temática, é permanente a da multiplicidade do Eu; o não ser bem ou suficientemente amado; o estar entre, entre o que é e o que poderia ter sido, a nostalgia da infância. Se há textos dirigidos a mulheres como a Ophelia, também os há sobre o amor homossexual. Em tudo sempre persistindo a saudade do que nunca chegou a ser no labirinto de si mesmo. Os poemas à la manière de A. Caeiro, Bateram com uma bota na cabeça de metade do silêncio, eventualmente revelador de um Pessoa anunciador do surrealismo, e A Vida de Arthur Rimbaud abrem leituras para a obra de um poeta ainda desconhecido."



Cartas são um laboratório da vida literária

"Como se liga a poesia de Pessoa à correspondência? A resposta será certamente a mesma, tanto para a obra epistolar como para os escritos autobiográficos o discurso dir--se-ia em ambos os casos de uma "sinceridade traduzida, construída". O livro Realidade e Ficção/Para uma Biografia Epistolar de Fernando Pessoa, de Manuela Parreira da Silva (edição Assírio & Alvim, 2004), ajuda, na sua densa legibilidade, a uma melhor compreensão do universo pessoano definido exemplarmente pelo poeta "O que em mim sente 'stá pensando."

Basta seguir o percurso labiríntico da carta de despedida que Fernando Pessoa endereça a Ophelia, primeiro escrita à máquina, depois interrompida e seguida de um poema em inglês com a mesma temática; novamente retomada (conhecendo-se-lhe posteriores acrescentos a lápis), logo se iniciando um outro poema na mesma língua...

Explica a ensaísta, também organizadora das edições da Poesia de Ricardo Reis (Assírio), da Correspondência Inédita (Livros Horizonte) e dos dois volumes da Correspondência (Assírio) "Há uma construção. Provavelmente Pessoa estaria a ser sincero perante uma ruptura, algo que certamente o abalou e que iria abalar Ophelia, mas nunca deixa de ser escritor."

Em Pessoa "há sempre o filtro entre o sentimento e a sua expressão". É sempre outro, como tão bem escreveu Octavio Paz, assinalando a sua poética do fingimento "Ele escreve num segundo momento, não a quente", diz a também investigadora do Instituto de Estudos sobre o Modernismo, cuja Reflexão Prévia sobre o Discurso Epistolar (incluída em Realidade e Ficção) é modelar na afirmação da "carta-corpo da escrita" também como espaço de criação.

"Produzida pela distância e produtora dessa distância", a carta penetra na problemática do "fingimento/sinceridade", tão pessoano. No seu dramatismo o lugar do Eu deixa-se contaminar, sublinha Manuela Parreira da Silva, por um "narcisismo essencial" que se afirma como espaço de representação.

Ler/reler esta correspondência múltipla de Fernando Pessoa no momento em que se continuam a revelar facetas desconhecidas do poeta ilumina, de alguma forma, a sua inacabada obra como se de um "laboratório do literário" se tratasse "A verdade organiza a ficção, mas é a esta que temos acesso", conclui Manuela Parreira da Silva."


Empreendedor e inventor

"É o Pessoa empreendedor e inventor, por vezes alucinante, que o escritor António Mega Ferreira foi descobrir. E fê-lo pelo lado da sobrevivência material, daquilo que o poeta chamava "não sem desconfiança a vida prática", fazendo justiça ao "inultrapassável trabalho de João Rui de Sousa" (Fernando Pessoa, Empregado de Escritório, Sitese, 1985). Sobre as suas iniciativas comerciais, empresariais e em nome individual, tratam os textos incluídos na obra Fazer pela Vida/Um Retrato de Fernando Pessoa, o empreendedor (Assírio &Alvim).

Estuda-se neste livro, de leitura aliciante, o que foi "empreendimento seu, o de Pessoa, mesmo que sonhado (com os seus numerosos inventos)". Mega Ferreira fala daquele que foi algumas vezes até empresário, abordando outras suas tentativas para "fazer dinheiro".

A empresa Cosmópolis - que Zenith entende poder ter sido o primeiro nome da Olisipo -, é um impressionante exemplo da largueza de interesses de Pessoa. Tratava o projecto de informações diárias a propósito de câmbios, de partidas e chegadas de vapores, de viagens de comboio, de traduções, da montagem e realização de escritos, de buscas e trabalhos literários por encomenda, etc.

Quanto ao Pessoa inventor, refira-se a "carta-sobrescrito", que viria a popularizar-se na II Guerra Mundial, um carreto da máquina de escrever (na ilustração), um sistema de estenografia, um projecto de máquina para guardar papéis... O Pessoa editor não fica esquecido neste livro revelador."


O poeta melódico-electrónico

"A Casa Fernando Pessoa, criada em 1993, pela Câmara Municipal de Lisboa, assinala os 70 anos da morte do poeta e simultaneamente o seu 12.º aniversário, com a apresentação, no seu espaço, às 21.00, de Wordsong Pessoa. Trata-se de um projecto pluridisciplinar que resulta na edição de um livro, de um CD e um DVD. Realiza-se ainda um ciclo de espectáculos em que o grupo integrado por Pedro d'Orey, Alexandre Cortez, Nuno Grácio, Filipe Valentim e a artista plástica Rita Sá revisita a obra pessoana. Do ponto de vista musical, os criadores transformam, manipulam, desconstroem e reconstroem, em experiências sonoras de formato melódico-electrónico, a escrita poé- tica do autor de Mensagem."

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