30.9.05

Diário remendado de Luís Pacheco, por Pedro Mexia

"A escrita de Luiz Pacheco sempre conteve elementos diarísticos. Não somente porque o escritor utiliza elementos pessoais nos textos mas também porque existe uma imagem de Luiz Pacheco que precede (e às vezes substitui) a leitura dos seus textos. Diário Remendado 1971-1975 é apenas uma concretização mais imediata dessa ideia. Depois de várias tentativas abortadas ou abandonadas, este diário vem finalmente a lume, com fixação de texto e posfácio de João Pedro George, biógrafo pachecal e seu discípulo em virulência crítica.

Um diário de Luiz Pacheco é como qualquer outro livro de Luiz Pacheco há prosa de primeira água, há vernáculo desabrido, há detalhes desnecessários, há um narcisismo cruento (cito) que sublinha a imagem desgraçada do escriba sujo, endividado e esfomeado, aqui escrevinhando na sua cama em Massamá nos anos setenta. Luiz Pacheco não é apenas esta imagem, mas vive muito dessa imagem "bêbado, maluco, panasca, teso". Aqui aparece esse sem disfarces esse Pacheco eternamente teso (nos dois sentidos) e obrigado a ganhar o cacau em biscates como traduções ou artigalhadas. Mas também fazendo reedições aldrabadas ou de luxo porque sabe que tem um público que paga tudo e papa tudo. E recorrendo a uma pedinchice constante entre mecenas, amigos, assinantes. Algumas passagens deste texto parecem apenas uma contabilidade de ganhos e gastos, natural em quem conta tostões.

Grande parte das anotações deste Diário Remendado dizem respeito à intimidade de Pacheco. À sua saúde periclitante, com doenças, achaques, ataques, medicações e consultas. Ao alcoolismo e à loucura que o assustam. Às tentativas (sem sucesso) de consumos comedidos. A isso se soma a miséria sexual engates com meninos e meninas, decadência física, masturbações. O mais curioso, nesse aspecto pessoal, é a extrema seriedade com Pacheco analisa as pessoas que o rodeiam, agora já não numa comunidade como outrora mas numa boémia desfeita e azeda, com cenas e tricas cansativas minuciosamente descritas mas redimidas pelo desvelo desajeitado pelo filho então a seu cargo.

Pacheco não esconde que é muito zeloso da sua reputação e da sua posteridade literária. É isso que explica que se zangue tanto com a sua produção escassa, ou pelo menos com a ausência de uma obra de fôlego, independente dos textinhos alimentares. Pacheco admite no entanto que não tem imaginação, e que está condenado aos textos críticos (cheios de farpas ao meio literário) e aos textos pessoais (hábeis montagens de cartas, textos confessionais e memorialísticos). O que mais o amofina é ficar assim confinado a um estatuto de menoridade, ainda por cima sujeito aos anticorpos que resultam da sua franqueza inconveniente. Diário Remendado acompanha as indecisões e agruras em torno das colectâneas Exercícios de Estilo (1971), Literatura Comestível (1972) e Pacheco versus Cesariny (1974), com contactos com editoras e tipografias e provas emendadas. Mas também se entregue a uma listagem pessimista de projectos futuros.

Pacheco deseja acima de tudo sossego para escrever, para elaborar calmamente uma Obra. Essa Obra, especula, pode ter a sua génese no próprio diário, pacientemente mantido em cadernos pretos "Aqui (parece-me) sou eu. Como na Comunidade, n'O Teodolito ou n'O Libertino ainda era eu, sob a capa de uma fórmula para o público (...). O salteado nos dias e meses deste pseudo-diário, o desconexo, o incompleto casual, são condições de mim. Um escriba de circunstância. Um tipo que queria ser escritor mas antes queria ser um homem livre" (pág. 151). Ao mesmo tempo, Pacheco reconhece que os seus amigos que conhecem a existência do diário receiam ser alvos e cobaias. O que gera novos conflitos.

Meio projecto ambicionado e meio projecto falhado, este Diário Remendado é assim uma acumulação sem disciplina de episódios pícaros, inventividade estilística, interlúdios oníricos, desabafos políticos, anotações literárias (Ba- taille, Beckett, Lawrence, Lowry, Sade, Sartre, entre outros) ou momentos anedóticos (exemplo os textos de Marx que curam a asma ao asmático Pacheco).

Estes fragmentos desamparados revelam o Pacheco que ama a literatura e detesta a literatice (comentário às cartas de Pessoa a Gaspar Simões "é só literatura"). Pacheco define o género diário do mesmo modo que define a literatura: como algo sincero e radical "Quando rebati a idiotice do escritor maldito estava a atacar frontalmente (...) um modus vivendi em que a maioria se deleitava viver a melhor vidinha possível, considerando a Literatura não um acto de conhecimento e afirmação (...) mas uma mercadoria mais na sociedade de consumo. Uma mercadoria elevada, de alta condição, nobre, assim mais ou menos o que, na Era dos Descobrimentos, seriam as especiarias do Oriente longínquo um condimento refinado. Não um jogo de vida ou de morte (connosco, com o Outro, com as palavras e as formas) - e era por aí que eu ia" (pág. 182). Há momentos em que este texto é excessivamente "ressacas, juras de não voltar a beber, conflitos com o Paulocas [o filho] banalíssimos ou quase, sentimentalismos serôdios e punhetas sem gosto, panascarias " (pág. 242). Mas noutros é sobretudo isto: "ora jornal do libertino, ora antídoto contra a desmemória, ora processo de conhecimento próprio, ora diário do escriba. Com suas presunções preocupações" (pág. 104). Diário Remendado é talvez o melhor diário íntimo português, embora não o melhor diário português. "

16.9.05

Apresentação

Este blog serve de complemento a Literatura Portuguesa em notícia. Nele serão publicadas as continuações dos textos mais extensos.