29.11.05

Pedro Mexia sobre "O excesso de consagrados"

Continuação do texto de Pedro Mexia:

"A análise não é descabida. No meio literário português, a consagração inibe a crítica. As razões são compreensíveis o meio é pequeno, o medo do confronto é endémico, o respeitinho é muito bonito. Também é verdade (mas há excepções) que os autores desconhecidos têm menos atenção do que às vezes merecem. Mas isso passa também por uma triagem em função das editoras: há editoras mais prestigiadas que outras, há editoras de cujo catálogo determinados críticos gostam mais. E há ainda uma legítima política de gosto. Isso não tem nada a ver com a importância ou grandeza da editora em causa (na poesia, muitas edições são quase confidenciais). Nem tem nada a ver com o escritor em causa. Tem a ver com uma linha editorial e com uma sensibilidade pessoal.

Outro aspecto que o romancista salienta já me parece terreno mais movediço. Escreve ele que uma pessoa que se tornou conhecida noutra área é visto com desconfiança quando publica um livro. É verdade, mas essa desconfiança encontra fundamento nos livros que as celebridades têm dado à estampa, quase sempre um inútil massacre de árvores. O meu correspondente alvitra que se os críticos lessem os textos sem saberem de quem eram chegariam a conclusões surpreendentes, pois não estavam condicionados nas suas opiniões pelo contexto e pelo currículo. Admito que isso acontecesse, e reconheço que era um exercício interessante. Mas a minha experiência em júris de textos originais (assinados com pseudónimo), leva-me a crer que um texto é quase sempre bom ou mau sem grande margem para dúvidas. É verdade que nesses concursos raramente há consagrados. Mas às vezes há surpresas. Ou nem são exactamente surpresas temos tantos escritores consagrados que nem todos podem ser escritores conseguidos. O nosso problema não está nos grandes talentos esquecidos mas nos medianos talentos empolados."

27.11.05

Actividade dramatúrgica de José Luís Peixoto

"Anathema passa-se num teatro onde dois actores representam Romeu e Julieta, de Shakespeare, e depois saem das personagens para convidar o público a entrar num jogo teatral, imaginando que aquele espaço seria ocupado por terroristas. Em palco nenhum dos actores tem sinais exteriores de guerrilha e até as armas e explosivos que deveriam carregar estão no chão. A violência está mais nas "palavras simples", como sangue, ódio, morte e é com elas que os actores provocam medo.
Curiosamente não foi o actor português que a interpreta, Tiago Rodrigues, que há anos colabora com os Stan, quem propôs encenar Peixoto. Foi a actriz Jolente De Keersmaeker que leu em flamengo Nenhum Olhar, o romance de estreia de Peixoto (também traduzido para francês), e gostou tanto que o desafiou a escrever um texto.
Sentada num café perto do Teatro de La Bastille, em Paris, a actriz explica que gosta da forma como Peixoto escreve "com arquétipos, tocando as raízes da linguagem". Peixoto tem "uma linguagem muito trágica" e as repetições constantes de frases são "uma coisa muito teatral", diz. "Sabia que quando escrevesse para teatro ia ser uma linguagem muito condensada, mas é um desafio." O desafio é o de como representar esta peça e como representar esta linguagem. Tiago Rodrigues dá o exemplo de Tchékhov, que permite aos actores ter ferramentas para o interpretar, e De Keersmaeker completa explicando que neste texto são eles próprios que têm que inventar essas ferramentas. "Tentamos que o espectáculo seja um exercício sobre como fazer teatro."
Para os Stan foi logo "claro" que iriam levar a peça de Peixoto ao Festival d"Automne, onde estão pela quinta vez. Quiseram apresentar um autor desconhecido e que não escreve para teatro. De Keersmaeker diz: "Há pessoas que perguntam: isto é um texto de teatro? Gosto da ideia de questionar o que é um texto teatral."

Escrita em "conjunto"

Ao longo de vários meses, os três foram discutindo o texto, que manteve o conceito inicial (a situação de violência real que interrompe uma ficção), mas foi sendo alterado até ao último momento. A versão final, que será editada para o ano, nem sequer corresponde à interpretada - entretanto houve mudanças de estrutura. Apesar de não terem introduzido palavras suas, os actores também escreveram, de certa maneira, a peça: pediram a Peixoto que desenvolvesse algumas ideias e que sintetizasse outras...
Mas o gesto mais determinante dos actores está na interpretação ao transformarem passagens dramáticas em cenas irónicas, o que não é uma característica da escrita de Peixoto. Para a actriz o texto precisa de ironia, caso contrário torna-se "muito lacrimejante". "É redundante representar nostalgicamente um texto que é nostálgico." A ironia apareceu porque é uma marca dos Stan e porque quando eles leram pela primeira vez o texto sentiram que "era tão condensado, tenso e denso" que era necessário "criar uma abertura". "A escrita para teatro é um meio novo, ainda não me sinto completamente à vontade", diz Peixoto ao telefone. "Neste momento interessa-me sobretudo aprender e nesta peça aprendi muito sobre teatro e com eles. Essas coisas que podem ser vistas como intromissão foi muito gratificante. Senti-me muito acompanhado na escrita do texto. Eles conheciam-no tão bem quanto eu." O autor sintetiza: "A grande vantagem de se fazer assim um texto é não ser rígido mas poder, de alguma maneira, ser feito à medida."

A jornalista viajou a convite dos Stan

Há quem considere que Anathema é "incrível", quem fique "intrigado" e quem questione se se trata de um texto teatral, contam os actores De Keersmaeker e Tiago Rodrigues. O Financial Times, que deu quatro estrelas em cinco ao espectáculo, considerou a peça "inquietante" e escreveu que a aproximação de Peixoto ao tema do terrorismo é "circular, alusiva, beliscando os nossos preconceitos". O Le Monde escreveu que o espectáculo é "muitas vezes apaixonante, porque sem academismo", e diz que "este teatro encontra o seu limite um pouco à tangente neste Anathema - talvez pela proximidade entre o autor e os intérpretes - mas sabe terminar a tempo e dá vontade de ler Peixoto"."

"

24.11.05

Eduardo Prado Coelho sobre Christian Bourgois

"Um grande editor

Já não há grandes nomes da edição no mundo europeu. A maior parte dos proprietários das editoras são uns senhores semianalfabetos que leram por obrigação escolar dois ou três livros na adolescência. Para eles, o grande objectivo consiste em ganhar dinheiro e falam dos livros como "os produtos" - exactamente como se fossem sapatos ou telemóveis. Quando encontramos um editor que gosta dos livros que publica, que os quer partilhar, que tem os seus gostos e até caprichos pessoais, ficamos em estado de festa. Bichos destes ainda existem, embora sejam raros. São quase sempre pequenos editores.
Christian Bourgois é um deles. Que neste momento o Centro Pompidou tenha uma exposição sobre Bourgois é inteiramente justo. Vamos vê-la para reconhecer e agradecer 40 anos de edição.
Suponho ter conhecido Bourgois na altura em que Portugal decidiu relançar a tradução das obras de Pessoa em França. A Gallimard recusou, e disso se veio a arrepender, recompensando o erro com uma magnífica edição de Pessoa, organizada por Patrick Quillier. A Différence também tentou, apoiada em José Blanco, mas a edição não chegou a vingar. Bourgois, com apoio do lado português, tomou o risco e descobriu, sobretudo com o Livro do Desassossego que não era um risco - era uma aposta certeira e vencedora.
Tivemos reuniões com Bourgois, Robert Bréchon, o grande artífice da obra, e José Afonso Furtado, pelo Instituto Português do Livro. Bourgois ouvia-nos durante meia hora, trocava opiniões e depois passava a atender telefonemas e a mandar faxes, deixando-nos a falar sozinhos. Tinha uma gestão exemplar do tempo. Mas ao mesmo tempo acompanhava os autores, como António Lobo Antunes, quando eles se deslocavam a França. Vi-o em Bordéus, numa iniciativa de Sylviane Sambor. Vi-o no plateau de um programa de televisão em que António Lobo Antunes participava. Tornaram-se grandes amigos e, quando Bourgois esteve doente, Lobo Antunes foi a França vê-lo. Um editor começa por ser isto: um amigo dos seus autores.
Além disso, os seus livros são inteiramente concebidos por ele. Os textos, claro, mas também as capas, escolhidas com um gosto apuradíssimo, que são a marca Bourgois no fabrico de um livro. No Centro Pompidou, podemos encontrar os principais volumes da sua edição. E as cartas comovidas que lhe enviaram: uma enorme atenção às literaturas de língua espanhola, de Vázquez Montalbán a Vila-Matas, passando por Bolaño; a descoberta de novos autores americanos e ao mesmo tempo a publicação de clássicos (Jack Kerouac ou Paul Bowles); a atenção à música (em particular Boulez, mas também Alban Berg, Luigi Nono, Varèse): prémios Nobel, como Toni Morrison: e grandes sucessos da poesia e da ficção portuguesas, como Pessoa e Lobo Antunes. Um editor assim é um exemplo insubstituível."

Ainda de Pedro Mexia

"A literatura intimista (2)

Como salientei na coluna de ontem, as cartas de António Lobo Antunes agora publicadas são textos pessoais depois validados como literatura (embora com algumas zonas cinzentas). O mesmo não acontece com Bilhete de Identidade (Alêtheia), as memórias de Maria Filomena Mónica, escritas com a intenção explícita de contar aos leitores episódios pessoais.

Na introdução, Mónica explica que esta autobiografia de juventude (1943-1976) surgiu na sequência da doença e morte da sua mãe. A mãe sofria de Alzheimer (ou seja, de ausência de memória) e deixou imensos papéis familiares (ou seja, imensas memórias). Estas memórias nascem desse colapso e desse reencontro. Há aqui uma intuição certeira e poderosa a intuição de que a identidade se faz da memória, a que se mantém activa e a que estava soterrada. Ao mesmo tempo, Filomena Mónica reivindica uma tradição autobiográfica destemida, quase inexistente entre nós mas que é comum nos países anglo-saxónicos.

Sem cuidados nem rasuras, Bilhete de Identidade conta tudo. Inevitavelmente narcisista, esta biografia põe em cena uma Julie Christie lisboeta em trânsito dos meios tradicionalistas para os meios esquerdistas. Há com frequência anotações e evocações curiosas, entre debutes e activismos, mas nada que não conheçamos doutros testemunhos. A estratégia inovadora passa por um sublinhado nada subtil estas são (nunca nos esquecemos) as memórias de uma mulher atraente e inconformista que teve casos com pessoas conhecidas e conta esses episódios com detalhe.

Esse é o aspecto mais questionável deste texto. Nada tenho contra a literatura intimista (muito pelo contrário) e não me considero especialmente puritano. Mas creio que (como dizia o outro) não havia necessidade de alguns comentários íntimos que aqui encontramos, sobretudo os que envolvem pessoas concretas e famosas.

O intimismo em causa própria é inteiramente legítimo o intimismo que implica terceiros é terreno mais melindroso. Tenho por isso alguma pena que este desassombrado testemunho seja um sucesso de vendas pelas razões mais básicas: porque as pessoas querem saber quem dormiu com quem (e como correu)."

23.11.05

De Pedro Mexia

Este mês foram publicados dois livros que levantam questões interessantes no âmbito da chamada literatura intimista as cartas de guerra de António Lobo Antunes e a autobiografia de Maria Filomena Mónica.D'Este Viver Aqui Neste Papel Descripto (Dom Quixote) reúne os aerogramas enviados pelo jovem Lobo Antunes à sua primeira mulher, nos anos em que o jovem médico estava mobilizado em África (1971/1973). Literariamente, defendo esta edição, na medida em que nos oferece dados biográficos e políticos importantes e nos descreve cenários e situações que constituem o imaginário do romancista. São, como diz o subtítulo, "cartas da guerra" e, nesse sentido, essenciais para o conhecimento do mundo antunino.Mais discutível é a dimensão de "cartas de amor" (como têm sido repetidamente chamadas). Do ponto de vista da legitimidade pessoal, diga-se, a publicação não é de todo abusiva as organizadores do volume, Maria José e Joana Lobo Antunes, contam que a mãe (entretanto falecida) manifestou vontade de que estas cartas tivessem publicação póstuma. E no prefácio, logo nos avisam que há alguns engulhos nesta exibição pública do que é privado: "As cartas deste livro foram escritas por um homem de 28 anos na privacidade da sua relação com a mulher, isolado de tudo e de todos durante dois anos de guerra colonial em Angola, sem pensar que algum dia viriam a ser lidas por mais alguém" [itálicos meus].Os textos intimistas geralmente implicam terceiros e isso exige cautelas. Assim, embora este seja uma versão integral, as organizadoras decidiram "eliminar alguns nomes, usando letras que não as iniciais, para não ferir susceptibilidades das pessoas referidas ou das suas famílias". Mas nestes aerogramas também encontramos passagens embaraçosas em si mesmas, pela sua natureza estritamente íntima e ridícula, como acontece com as coisas ditas ao ouvido. Nalguns passos (como na carta de 4-4-71), confesso que acho algo constrangedor sermos expostos à intimidade afectiva e sexual de António Lobo Antunes. Sobretudo na medida em que estes textos não foram escritos como literatura. Nesta edição, é esse desvio de intenção que me parece questionável (mas também defensável)."

4.11.05

Pedro Mexia sobre Alexandre O'Neill

Aqui se conclui o texto de Pedro Mexia no Diário de Notícias:

"A variedade é a alma desta recolha. Há alguns poemas visuais (os únicos já editados em livro). Há letras de fado. Há gazetilhas políticas. Há prosas que passam a verso e versos que passam a prosa. Há pastiches e imitações, que servem ao virtuoso O'Neill como diálogos esperados e inesperados com a literatura portuguesa moderna. Um núcleo importante contém os poemas baseados em (ou escritos como se fossem de) Artur Corvelo, o pateta deslumbrado que Eça desenhou no romance póstumo A Capital (uma piada acrescida, pois estes poemas apareceram no vespertino A Capital). É uma poesia solene, artificiosa e gozona, um exercício poético que é também uma cooptação da crítica social queiroziana.

Outros textos são mais típicos do cânone alexandrino. O'Neill é excelente no poema urbano e deambulante que capta uma situação ou apenas um flagrante de uma situação e faz disso motivo poético. O acontecimento ocasional e sem significado aparente é mesmo o âmbito temático que O'Neill (céptico face aos Grandes Temas) prefere. Daí os poemas sobre os velhos (uma série notável que conhecemos doutros livros), os dichotes aforísticos, o poema sobre os filmes sexualmente explícitos (que mistura sexo e política e jogo verbal) ou mesmo o epitáfio de Elvis.

Os poemas são ao mesmo tempo experimentais e quotidianos, e revelam (numa leitura mais atenta) um cunho moralista algo paradoxal num antimoralista encartado. O tom às vezes é prosaico, outras vezes absurdo, outras obscuro. Uma coisa O'Neill nunca é um poeta umbiguista. Mesmo porque (como ele diz num poema) o umbigo está cheio de cotão. E até o cotão parece um tema mais interessante que o umbigo.

Alguns destes poemas são, reconheçamos, menoríssimos, curiosidades ou quase piadas rabiscadas num guardanapo. Outros, nomeadamente os políticos, têm mais picante que mérito. É curioso como O'Neill mantém uma ironia de resistência mesmo em clima de (titubeante) normalidade democrática. Um clima que também antecipa, de modo patusco, a inevitável chatice democrática "À esquerda da minoria da direita a maioria / do centro espia a minoria / da maioria de esquerda / pronta a somar-se a ela / para a minimizar / numa centrista maioria / que a esquerda esquerda não deixa (...)" (pág. 81). Ausentes ou quase desta colectânea, apenas os poemas amorosos, esses que estabelecem o poeta em terreno surrealista propriamente dito.

Muitos destes salvados nem poemas são são mais frases, flashes, fragmentos, miniaturas. Isso justifica que não tenham sido recolhidos em volume (individualmente) pelo autor, mas não impede que vistos no seu conjunto tenham algum interesse. Aqui, como sempre, o virtuoso O'Neill usa diversos processos (trocadilhos, assonâncias, neologismos, aglutinações, jogos fonéticos) que sirvam o seu propósito lúdico. E qual é esse propósito? Como escreve Fernando Cabral Martins no posfácio, ao poeta interessava antes de mais a materialidade das coisas como são e uma retórica de invenção formal que usa muitas vezes mecanismos básicos como o coloquialismo. E há ainda uma persistente desilusão, quase sempre revestida de ironia ou zombaria. Cabral Martins lembra que existe uma linha fina entre os vários realismos e que, sobre essa linha, caminhou, todo lampeiro, o nosso Alexandre "Pode tentar-se, a seu respeito, a designação de 'surrealista experimental', o que tem a vantagem de o colocar no centro do processo poético das duas décadas de 50 e 60, que nele se fundem e transformam. Sobretudo se aceitarmos que há uma vocação realista que se encontra implicada no culto surrealista da surpresa, pelo menos na Lisboa de meados do século XX. O 'neo' e o 'sur' são prefixos que então, por vezes, se cruzam ou se tocam" (pág. 123).

É o que vemos num dos famosos inventários surrealistas, de cunho lisboeta e que vale a pena citar integralmente "o ar milonga do lisboeta / o ar mastronço do lisboeta / o ar activo do lisboeta / o ar coitado filha do lisboeta / o ar cabotino do lisboeta / o ar reservado do lisboeta / o ar dia oito do lisboeta / o ar missa da uma do lisboeta / o ar campdòrique do lisboeta / o ar queixudo do lisboeta / o ar ramona do lisboeta / o ar bichona do lisboeta / o ar pasma do lisboeta / o ar barrigatesta do lisboeta / o ar último olhar de jesus do lisboeta / o ar vilas boas do lisboeta / o ar estoril do lisboeta / o ar em princípio vou do lisboeta / o ar eu depois confirmo do lisboeta / o ar catarino do lisboeta / o ar daniel do lisboeta / o ar terilene do lisboeta / o ar jaguar do lisboeta / o ar poupar do lisboeta / o ar gastar do lisboeta / o ar solmar do lisboeta / o ar morrinhanha do lisboeta / o ar seminarista do lisboeta / o ar boçal do lisboeta / o ar servil do lisboeta / o ar por aqui me sirvo do lisboeta / o ar eu cá não vi nada do lisboeta / o ar portagem do lisboeta / o ar esnègabar do lisboeta / a ar jardim cinema do lisboeta / o ar crise de teatro do lisboeta / o ar é natal é natal do lisboeta / o ar estufa fria do lisboeta / o ar padre cruz do lisboeta / o ar mártires do lisboeta / o ar conjuntura do lisboeta / o ar ultramar do lisboeta / o ar tecnolírico do lisboeta / o ar você do lisboeta / o ar donamélia do lisboeta / o ar alentejano do lisboeta / o ar chico esperto do lisboeta / o ar sector um do lisboeta / o ar monsanto do lisboeta / o ar transístor do lisboeta / o ar trombudo do lisboeta / o ar lisbonudo do lisboeta / o ar matraquilhos do lisboeta / o ar agenda do lar do lisboeta / o ar et pluribus unum do lisboeta" (pág. 46). A palavra (irónica) descreve (é neo) mas também inventa e ultrapassa (é sur).

O'Neill joga com a herança de Álvaro de Campos (em elisão), com as correntes do seu tempo, com as notícias de jornal, com a vidinha, com todo o tipo de materiais (literatos ou nada literatos) e escreve poemas do seu tempo que são verdadeiramente originais e, nalguns momentos, marcantes. Se. como diz o ensaísta já citado, os poemas dos anos 70 marcam o "apogeu estilístico" de O'Neill, eles servem mais para completar as Poesias Completas (2000) do que como capítulo autónomo. Alexandre O'Neill é um dos nossos grandes modernos porque se empenhou numa contínua lição de coisas. Coisas que são os poemas. Coisas que, como escreveu, usamos, canhestros, como se fossem portas. De tal modo que ficamos sempre com a maçaneta na mão."

Sobre Cesariny

Prémio Vida Literária para Cesariny: "Toda a vida fiz infracções" (cont.):

""Mário Cesariny é, na singularidade extrema da sua estética, um poeta raro. Celebrá-lo, por tudo quanto doou à nossa comunidade de leitores através de gerações, assume, assim, a plenitude de uma homenagem livre e devida", considera o júri, a direcção da APE, em comunicado. A decisão, unânime, salienta o "fulgor de um percurso artístico que, também na literatura, encontrou a expressão mais alta".

Tal como antes recebera o Grande Prémio EDP de Artes Plásticas/consagração - biénio 2002-04, com inerente retrospectiva integral, há um ano, no Museu da Cidade -, o poeta de Pena Capital e Titânia ou A Cidade Queimada aceita a(s) distinção(ões), embora "em infracção", argumentando "Porque, para mim, este é um prémio da democracia, enquanto com a ditadura me dei muito mal". Recorde-se que, sob o fascismo salazarista, o também estudioso e organizador editorial da memória e história do surrealismo português sofreu perseguição policial sistemática, devida à sua homossexualidade, a ponto de exilar-se em Londres.

Daí que, tanto quanto em reacção ao EDP de consagração, reconheça "Estou contente, sim. E têm a gentileza de vir trazer-me o prémio a casa, porque já me custa a andar." No seu peculiar estilo jocoso, a propósito da bicicleta para exercício domiciliário, remata o poeta: "olho para ela e começo-me a rir, mas a pedalar ainda não comecei." Nunca os "grilos da paróquia" venceram o humor natural deste sobrevivente, para nos remetermos ao poema de O'Neill (ver texto reproduzido em baixo).

O presidente da APE, José Manuel Mendes, e o representante da CGD, patrocinadora do prémio, acompanhados pelo Presidente da República, Jorge Sampaio, não entregarão o Vida Literária na Culturgest, como sucede normalmente, mas, sim, na residência de Mário Cesariny, em Lisboa, como já acontecera no caso de José Cardoso Pires, hospitalizado à época, tendo o prémio sido levado à sua esposa, na residência. José Manuel Nunes lembra ao DN esse "único precedente", adiantando que, nessas circunstâncias e por razões óbvias, "o acto em si não será aberto à Comunicação Social, embora certamente seja pensada uma forma de os jornalistas se encontrarem nas imediações" da casa, a Sete Rios, no dia 30.

O presidente da APE e também poeta faz questão de declarar-nos "Na associação reside a ideia de que, sendo Mário Cesariny quem é, havia um débito das instituições literárias em relação a ele. Em parte por ser um homem discreto, tem sido pouco considerado para decisões deste tipo e nós tínhamos de liquidar esse débito perante o esplendor da sua obra poética."

A coroar reconhecimentos, espera-se que o ICAM deixe de chumbar o projecto do filme A Norma de Bellini, de Manuel Gonçalves Mendes, realizador do premiado Autografia


Poesia na 'reabilitação do real' (cont.):

"Citámos o maior especialista ibérico em surrealismo, Perfecto E. Cuadrado, falando ao DN pelo telefone, de Madrid. Acentuou ainda "Não falo como académico mas como homem comovido, porque é um prémio mais do que merecido". Ouvimos também o pintor João Vieira e o escritor Helder Macedo, sobreviventes do Grupo do Café Gelo (com Herberto Helder), a tertúlia lisboeta que Cesariny frequentou.

João Vieira recorda-nos "uma longa história com Mário Cesariny" depois daquele tempo, conviveram em Paris e Londres. "Foi extremamente importante na poesia da época [anos 40-60] e, se não escreve há muito tempo porque, diz, a Musa pôs-lhe os cornos, isto mesmo tem a ver com a sua utilização da linguagem. Nós, no Gelo, apreciávamos a reviravolta, na maneira de pensar e de utilizar a língua portuguesa, do Cesariny, como do Cesário, do Sá-Carneiro, do Pessoa. Gostava ainda de destacar, no Cesariny, a sua grande atenção aos novos poetas que surgiam, a generosidade: até me emprestou o atelier."

Helder Macedo "Mário Cesariny é um dos mais carismáticos e importantes poetas da geração a que pertenço, a geração de Herberto Helder. Era, nos anos 50 e 60, a grande revelação da poesia portuguesa, tendo trazido uma dimensão nova à poesia. Fico contentíssimo com a atribuição deste prémio"."
(documentário sobre Cesariny), segundo guião do poeta e pintor, com participação também pre- vista entre os intérpretes."