26.12.05

Entrevista a Fernando Echevarría

"A poesia talvez seja sempre dádiva

Poeta publica Obra Inacabada pelos 50 anos de vida literária. E fala sobre prémio de Cultura Manuel Antunes, atribuído pela Igreja Católica.
Por António Marujo

O poeta Fernando Echevarria prepara-se para publicar uma colectânea de toda a poesia, assinalando assim os 50 anos da sua vida literária. Com o título Obra Inacabada, o livro assinala o 50º aniversário da publicação de Entre Dois Anjos, publicado em 1956. Ao mesmo tempo, o poeta prepara a edição de Epifanias, um novo livro de poemas, o primeiro inédito depois de Introdução à Poesia, de 2001. Tudo na Afrontamento, a sua editora.
Echevarria recebeu há dias a primeira edição do Prémio de Cultura Padre Manuel Antunes, instituído pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (SNPC). Este organismo da Igreja Católica, cujo director é o padre José Tolentino Mendonça, considerou, na sua decisão, que Echevarría "não persegue uma realidade determinada pelo sensorial, mas aquela realidade que é o princípio de toda a realidade". Nos livros de Echevarria insinua-se um sentido da "dádiva, que nos mergulha no mais extenso silêncio - o silêncio aberto de Deus", considerou ainda o júri.
O poeta tinha sido já distinguido com os prémios de poesia do Pen Clube (1981 e 1998) e da Associação Portuguesa de Escritores (1991) e com os prémios Eça de Queiroz (1995), António Ramos Rosa (1998) e Luís Miguel Nava (1999).
Respondendo por correio electrónico, a propósito do prémio do SNPC, Fernando Echevarria diz que escreve fazendo "uma espécie de exercício espiritual". O poeta, que esteve exilado na Argélia durante o Estado Novo, recorda também essa experiência com pessoas "que andam ainda por aí" para revelar o seu desencanto com formas actuais de fazer política, confessando que, apesar de instado a entrar na vida partidária, preferiu não o fazer.
PÚBLICO - Como recebeu este prémio, de uma estrutura católica, que pretende destacar um percurso que tome "valores da experiência cristã como sedimento e energia para uma criação cultural"?
FERNANDO ECHEVARRIA - Não escondi nunca que sou católico. Não posso recebê-lo sem o sentimento de uma honra, com certeza imerecida, mas que destaca, por isso mesmo, a generosidade do júri que mo atribuiu. Se acrescentarmos o facto de o prémio levar o nome do padre Manuel Antunes que conheci e admirei e, mais ainda, impôs, em 1956, alguns poemas do poeta incipiente que eu era então ao primeiro número da Graal, compreender-se-á facilmente quanto mais grato me é hoje ver o meu nome associado ao desse grande intelectual e professor.
O júri referiu que a sua poesia fala do "silêncio aberto de Deus" e de uma realidade para lá do real. A sua poesia tem uma dimensão transcendente ou está mais próxima da sua experiência política?
Preferiria chamar cívica, e não política, a experiência que refere. Tratava-se, na altura, de um dever decorrente do facto de ser católico o que surpreendia aqueloutros que já na altura, embora opostos ao regime vigente, faziam da política sua actividade exclusiva. Não eram todos, evidentemente. Mas enquanto muitos, na Argélia, por exemplo, vivíamos do nosso trabalho, nem sempre convenientemente remunerado, havia os que viviam de dinheiros vindos não se sabe donde.
A experiência não pode, pois, limitar-se a essa circunstância, ainda que ela não se possa separar da de um cristão situado no mundo daqueles anos de que não guardo saudades - a não ser de factos que nada têm a ver com a política. Os actores dela, que andam ainda por aí, nem então nem depois deram conta do recado. O antigo regime, que não tolerava oposições, era, é claro, o grande responsável por isso. Hoje as coisas mudaram sem melhorarem grande coisa e os mais aptos não são já os velhos de então.
Antes disso, há a dizer que, instaurada a democracia após a nova ditadura que a cada lei aprovada achava que ela já estava ultrapassada, recusei-me a fazer carreira nessa actividade, apesar de instado.
Passemos à experiência do "silêncio aberto de Deus" e da transcendência. Espero que apareçam no horizonte do que vou escrevendo, isso sim. Tenho consciência de não ser o único, nem o melhor responsável por isso. Posso dizer, no entanto, com a humildade que se impõe, que considero o meu trabalho como uma espécie de exercício espiritual e de auscultação. O resto virá talvez por acréscimo, se Deus quiser.
Uma das críticas ao seu último livro dizia que a sua poesia como que conduz o leitor para a dimensão do poema como dádiva. Para onde quer conduzir o leitor? E que lhe quer dar?
Um dos livros de Miguel Torga leva o título feliz de Nihil Sibi. O que quer dizer que a poesia talvez seja sempre dádiva. E o essencial da dádiva está no dom pronto a dar-se de contínuo. No caso do poema, a dádiva aparece na leitura. Até então o livro não passa de uma real potencialidade à espera do leitor a vir. Potencialidade, contudo, superabundante e implícita que não pede senão vir a ser explicitada. Nessa passagem do implícito ao explícito é que se pode apreender a natureza singular e silenciosa da dádiva.
Quem melhor poderia falar-nos disso seria o leitor. Nós, os que escrevemos e somos igualmente leitores, nossos e uns dos outros, sabemos também alguma coisa. Uma delas é que, para que possamos beneficiar dessa dádiva, será preciso, de certa maneira, merecê-la. Devemos dispor-nos a essa leitura. Preparar-nos a esse silêncio prévio que nos nutrirá de um silêncio maior e mais exigente."

Fernando Ilharco, "As boas e as más notícias"

"Em qualquer altura do ano e em qualquer dia,as boas notícias são a publicidade e as más notícias são o telejornal. Em termos estruturais à sociedade que somos, é a forma como participamos em cada um daqueles universos simbólicos que determina quem somos
Embora seja correcto que, à excepção do conflito da Jugoslávia, nunca houve uma guerra entre países com McDonalds, que talvez mais do que a democracia é a sociedade de consumo que evita as revoluções, e, como Max Weber escreveu, que a questão central das comunidades é a legitimação das elites e o afastamento do poder da generalidade da população, não deixa de ser indubitável qualquer coisa de extraordinário na textura do consumo cultural que envolve uma parte da população do mundo Ocidental e assim também da população portuguesa. Ao olhar-se as milhares de pessoas que enchem as livrarias, as lojas de música, de DVDs, de informática e de electrónica, não se deixa de intuir-se os milhares de universos imaginados e imaginários, povoados de histórias, de melodias, de valores e de enigmas, todos eles, hoje, mais reais do que o que nos ensinaram ser a realidade. Hoje o real é o hiper-real. Para todos os efeitos, a quantidade de produtos e de serviços culturais é hoje infinita; e a sua qualidade, em geral e em termos massificados, deixa a boca aberta a multidões inteiras. O que enche as nossas vidas, os livros, os discos, os filmes, os milhares de aparelhos de electrónica tem evoluído imensamente nos últimos anos; embora, claro, ao ser uma plastificação, uma substituição, e ao se experimentar como mais real que a realidade, a digitalização tem tido como consequência a subida dos preços e da apetência das elites por tecnologias não digitais, isto é, mais reais. A evolução deste verdadeiro novo sector de actividade, a gigantesca área da informação e comunicação, sucessora dos sectores dos serviços e da velha indústria, e que nos chega como oferta cultural, tem feito sentir-se ao longo de três eixos: o preço - consequência do quadro competitivo global em que assentam as indústrias da informação, os preços evoluem em tendência estrutural de queda; a qualidade - a digitalização, como que purificando aquilo que toca de interferências da realidade, tem permitido subidas apreciáveis na qualidade da generalidade dos produtos e serviços; e finalmente, resultado dos dois movimentos anteriores, entre outros factores, a quantidade de produtos e de serviços do novo sector da informação e comunicação não pára de subir. É este o quadro que nos envolve. Mais do que cercados, estamos genuinamente mergulhados numa nova realidade, mas tão real como as que a precederam porque a realidade humana sempre foi simbólica. Não foi apenas Corto Maltese que viveu num mundo imaginado, de partidas e de chegadas, mas fomos sempre todos nós que o fizemos. Esta sociedade da abundância, filmada por Wenders e cantada por Cohen, é sentida no Ocidente e talvez com particular acuidade em Portugal, membro recente desta história, como uma oferta exagerada, desproporcionada e por isso, como refere Baudrillard, constitutiva de uma divida que nunca poderá ser paga. Seriam necessários milhares de Live 8.
O consumo de bens culturais é hoje um estilo de vida, os quais sempre determinaram o valor, o uso e o simbolismo das coisas e das ideias. O imaginário hiper-real é hoje a ontologia dominante. Tão irreal quanto os mundos que levantaram do chão as mãos do homem, que lhe voltaram a face para o céu, que lhe deram um trabalho, um futuro e uma dignidade, o simulacro hiper-real é hoje real porque a realidade sempre foi virtual, por isso, livre e o homem responsável pelas suas acções, pelo mundo que abre nas suas escolhas. No universo simbólico digital, as histórias, os jogos, as músicas referem-se uns aos outros. Como se de uma nave espacial se tratasse, a hiper-realidade descolou da realidade tal como antes a vivíamos, substitui-se ao mundo que a precedeu. Uma geração depois - em Portugal definitivamente no início deste século -, o universo imaginário da TV cabo, da Internet, dos telemóveis, dos DVD, das FNAC, Colombos, Corte Inglês, etc. é a verdadeira natureza, é o que as coisas são, o contexto no âmbito do qual surge o que surge e conta o que conta, isto é, emerge o próprio mundo.
Em rigor, ninguém sabe à volta do quê e de quem gira o imenso poder de sedução que se experimenta na sociedade contemporânea da abundância. A sua lógica, no entanto, é cristalina. Quer nos anúncios quer nas notícias, os critérios de participação e de exclusão são claros. Em momentos cerimoniais como o das compras em massa que socialmente se impõe nesta quadra, percebe-se que no mundo simbólico digital, na realidade imaterial em que vivemos, a nossa história é contada todos os dias na televisão: se tudo correr bem, se rolarmos na grande roda da abundância, as boas noticias, ou seja, a publicidade, é o que nos é dirigido; caso contrário, um dia, sem querer, aparecemos no telejornal. Na FNAC ou no Media Markt, em qualquer gigantesca casa de livros, filmes e música das milhares que existem pelo mundo Ocidental, compreende-se como hoje as boas noticias são a publicidade e as más noticias o telejornal. Ao princípio da noite, depois do telejornal, entretanto transformado num dos mais violentos programas de televisão, enquanto o écrã vai passando as cotações das bolsas de valores, vamos experimentando uma espécie de desaceleração, de aterragem no outro lado da realidade, num espaço de menos urgência e de mais tempo. O boletim meteorológico, que se segue, consubstancia a alteração final. Falando sobre o futuro - sempre o tema que a todos preocupa - o meteorologista diz-nos que amanhã o tempo não vai estar mau... - é tudo o que precisávamos saber. A vida continua, atrás de nós fechou-se o quarto de saída das más notícias e as boas notícias vêm aí: a publicidade, a vida como cinema, as soluções sem problemas, a juventude eterna. É este novo mundo hiper-real, global, que hoje se nos impõe, no qual é preciso sobreviver; paradoxalmente, deixando de sonhar."

18.12.05

O Padre Manuel Antunes e Manuel de Brito, segundo Jorge Silva Melo

"Era para falar de Manuel Antunes, recomendar as obras que agora se editam, tanto quanto possível completas, em comemorações de ausência que até este fim de semana se celebram. Mas era também para dizer que a letra de Manuel Antunes nunca foi como a sua voz, a mais clara foi a sua palavra dita, a pausa, a suspensão, a repetição, a ênfase também gestual, aqueles seus gestos codificados e tão próprios. Procuro nalguns (tão poucos) livros que dele tenho (da velha Moraes, da Ática) e, se encontro neles um pensamento cuidado e atento, já nestes textos - muitas vezes de ocasião, prefácios, notas, com as obrigações formais em uso- não vejo o brilho heterodoxo do mestre extraordinário, extravagante, rigoroso, curioso, atentíssimo, o olhar maroto de quem acabou de ter uma ideia e a avança, provisória, aposta.
Os seus textos são bons textos. Mas o que era extraordinário naquelas suas aulas altamente formais, era a maneira como ele se libertava das obrigações, como ia de Eurípides a Sophia, como, estudantes muito jovens, éramos interceptados na curva exaltante de um pensamento sempre a fazer-se. Jesuíta, era nas aulas (que, em cristã e militante alegria, rompiam a lúgubre faculdade) que a sua palavra afiada, lenta, preciosa, fluía. Mais do que escritor, Manuel Antunes é um professor. E, mais do que o ensaio, a aula era o seu palco, quartas às 11 no Anfiteatro 1.
Tinha pensado falar de Manuel Antunes, mestre, quando fui apanhado pela morte de Manuel de Brito, o livreiro, o galerista que, durante esses mesmos anos de faculdade, eu frequentava, a quem comprei a inevitável "Paideia" de W. Jaeger, em castelhano, manual precioso para a Cultura Clássica, e o "Les Mots et les Choses" que Manuel Antunes nos revelou, estupefacto, ele - e nós, entusiasmados.
Manuel de Brito morreu agora. Também ele terá sido meu mestre, ensinou-me o gosto de mostrar, de editar, de importar livros, de fazer, de encontrar, de procurar o livro desejado, mestre em juntar pessoas, mestre de negócios (homem que em si concentrava a epopeia burguesa "no tempo em que a palavra era/ um conceito moral, vizinho da honra/ e irmão chegado do trabalho" nos estupendos versos do Armando Silva Carvalho), mestre dessa arte infindável que é a de se tornar o epicentro de tudo naqueles anos incertos, poesias, tudo o que pudesse ser, livros, traduções, pinturas, a casa cheia de gente, tantas ideias, que bonita a sua 111 (e o logo do Vespeira), fervilhante, e quando então chegavam novos (caríssimos!) Gallimard brancos.
Mestre erudito um, autodidacta o outro, tive a sorte de os ter, de os ouvir, ávidos eles e eu. O privilégio das horas mortas da conversa de corredor na faculdade ou na loja, de cotovelo apoiado ao balcão, quando ainda se fumava nas lojas. Foram-me abrindo o mundo - e com o abre-latas da conversa, às vezes a ironia, a anedota, a pequena inconfidência que nenhuma letra guardará, coisa mais séria, abriram com a acção, as noites de trabalho, a descoberta que a tinta não fixou, fundiram-se-me na vida.
E lembro-me de Manuel de Brito me falar de como, na Livraria Escolar Editora, a livraria por onde começou, naqueles anos depois da guerra, anos de Abelaira, diria, anos de desencantos e outras tantas teimosias, se reuniam os mestres de ciências que o tinham tomado como jovem protegido. E ele me falava desse Ferreira de Macedo, que nunca, é claro, conheci, do jovem Caraça, os matemáticos impulsionadores de tanta coisa, destemidos instigadores. E através de Brito, eles chegaram até mim e talvez, outra vez, agora a partir de mim que já sou quase sempre "o mais velho", estas conversas que não ouvi cheguem a outros, sem letra, pelo aperto de mão.
É a cultura oral a fazer-se, a desaguar nos dias.
A letra - e esta também não - nem sempre apanha as conversas, as aulas, não as prende, mas também elas não se vão com o vento, passam de boca em boca, vão-nos fazendo.
E há uma genealogia do pensamento que escapa ao livro, passa pelo gesto e fica no ar: a cultura oral ainda nos faz, com o riso, o exemplo, o sorriso que a letra não conhece.
E foi na conversa (activa, cada uma delas e a seu modo diverso) seja de Manuel Antunes, seja de Manuel de Brito que terá ficado, precioso, o ouro dos seus dias."

O Padre Manuel Antunes, segundo João Bénard da Costa

"1.A primeira vez que o vi foi no fundo da "sala capitular" do claustro do velho Convento de Jesus, corria o ano de 1957. Eu tinha feito 21 anos, ele ia fazer 39. Eu estava a acabar o 3.º ano do curso de Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras, à época moradora nesse convento e dirigida por Vitorino Nemésio. Ele acabava de ser convidado pelo mesmo Nemésio - no gesto mais feliz de funções que exerceu com manifesto desconforto - para ensinar História da Cultura Clássica e História da Civilização Romana.
Ao padre Manuel Antunes - embora eu nada conheça da sua vida pessoal nem conheça quem conheça - poderá talvez aplicar-se o que ele próprio disse um dia de Kierkegaard: "Um ser que nunca foi criança, nunca foi adolescente, nunca foi jovem, mas adulto, sempre adulto." Aos 39 anos, parecia ter 50. Como recordarão os que o conheceram, o físico não o ajudava. De meã estatura, magríssimo, lívido, com um fio de voz, parecia, nos hábitos talares que, nesses tempos, nenhum sacerdote dispensava e muito menos um servo de Jesus, a própria encarnação do beato asceta, que o secular anticlericalismo português investiu no padre, quando o não investia com a malícia e os prazeres da mesa, na imagem caricatural dos abades do Minho.
Em 1957, metade (pelo menos) dos alunos da Faculdade de Letras, a metade oposicionista, era jacobina e via em cada clérigo um oficiante do regime então vigente. Se já tinham franzido os sobrolhos à notícia de um padre jesuíta como professor da Faculdade, quando o viram não reprimiram comentários trocistas e, até mesmo, se bem me lembro, alguns risos. Duraram pouco. À medida que o padre Manuel Antunes foi desenvolvendo a sua hoje famosa semiogonia de conceitos como história, cultura ou civilização, fez-se um imenso silêncio naquele vasto auditório, a que se seguiu o pasmo quando citou de cor, em grego clássico, uma longa passagem do Críton, que logo traduziu, sem se socorrer de qualquer nota, ou quando, passando a Cícero ou a Tácito, usou da pronúncia restaurada para dizer Kikero ou Takitus. Depois, divagou sobre Hegel e Dilthey, Max Scheler e Heidegger, com autoridade e segurança que esmagaram os preconceituosos ou os que, vendo caras, julgavam ver cabeças.
Começou nessa tarde a lenda do padre Manuel Antunes, constituída a partir do ímpar prestígio que alcançou durante os 2 anos da sua carreira docente.

2. Nunca fui aluno dele. Mas, se em 57 já sabia que ele era o mais cultivado e o mais criador dos nossos críticos literários (os textos da Brotéria), se, ainda na década de 50, escutei sobre ele encomiásticos elogios de pessoas de elogio tão exigente como Sophia ou Jorge de Sena, a espantosa dimensão do homem foi-me revelada quando o conheci pessoalmente, em 1959, graças à amizade comum do António Alçada Baptista.
Eu preparava então uma tese sobre o tema do "outro" no personalismo de Mounier. Depois de algumas conversas, nesses anos iniciáticos da Moraes, pedi para falar com ele e visitei-o na sede da Brotéria, então na Lapa. Lembro-me que era uma tarde muito fria e que a moradia era de uma austeridade impressionante. Mandaram-me entrar para uma salinha desconfortável de cadeiras hirtas. Nenhum aquecimento. Chamado do quarto, o padre Manuel Antunes apareceu-me de sobretudo e mãos enregeladas. Quando lhe expliquei ao que vinha, disse-me que nem o tema nem o pensamento de Mounier eram terrenos que dominasse. Mas foi-me recomendado algumas leituras, e, em breve, eu tinha uma bibliografia que ia de Buber a Buytendijk, de Nédoncelle a Jean Wahl, para citar alguns nomes com quem depois vivi, entre dezenas de outros, de que me ia indicando, de memória, edições e datas ou recomendando as melhores traduções, quando se tratava de alemães ou nórdicos. Saí dali esmagado: se assim acontecia em terrenos em que se dizia leigo, que seria se lhe pedisse autores das suas orientações dominantes? Esqueci o frio, esqueci o desconforto. Mas não deixei de reflectir em como seria a vida daquele homem, entre as aulas e essa casa, em que até para ir jantar a casa de amigos tinha que pedir autorização.
Nos anos 60, o nosso convívio estreitou-se. Quando cinco casais de católicos, apelidados de progressistas, estabeleceram entre si um Pacto (ideia do António Alçada) que implicava vidas e trabalhos comuns, foi o padre Manuel Antunes o nosso assistente (assim se designava o nosso orientador espiritual) e não vacilou perante a heterodoxia da coisa. Muito pelo contrário: viu nela um sinal de Deus e de caminhos futuros ou de caminhos do futuro. Depois, foi um dos membros da comissão portuguesa, filial do Congrès/Association pour la Liberté de la Culture, e esteve em combates muito difíceis nos anos 60 e 70, antes dessa Revolução que ele analisou, como mais ninguém, nesse livrinho sublime a que chamou Repensar Portugal, em que, de 1979, e interrogando os cinco convulsos anos precedentes, se perguntou e nos perguntou "como e porquê aconteceu assim". Termina a introdução a essa obra com duas citações de Nietzsche que me têm acompanhado vida dentro: "É a cultura que dota a consciência de memória, mas essa memória é mais função do futuro que do passado" ou "a primeira categoria da consciência histórica não é a memória ou a lembrança: é o anúncio, a expectativa, a promessa".
Citações contraditórias? Para ele não o eram, nem nunca o foram, e, na minha memória, as junto a duas das citações que mais lhe ouvi. Uma é de Heraclito e diz-nos que "quem não espera não encontra o inesperado, que é inefável e inacessível". A outra, de Claudel, quando escreveu que "cada artista vem ao mundo para dizer só uma coisa, une seule toute petite chose. É só isso o que tem que encontrar, agrupando tudo o resto em redor dela". A porta que só para a personagem do Processo de Kafka fora feita e que depois da morte dele não podia servir a mais ninguém.

3. Citei acima a passagem do padre Manuel Antunes sobre Kierkegaard, o sempre adulto, atrevendo-me a compará-lo, nessa dimensão, ao homem que nasceu de família humilíssima da Beira Baixa e que, aos 14 anos, deu entrada num Seminário Menor da Companhia de Jesus, em Guimarães. Mas, se o padre Manuel Antunes fala do autor de A Alternativa como de um "espírito carregado de interrogações", "carregado de interrogações" é como eu o lembro ou repenso. A resposta para elas tê-las-á encontrado na Fé, essa Fé que o fazia "chorar de alegria", no "pleurer de joie" pascaliano, que ele também tanto gostava de citar. Mas foi nas interrogações que sem cessar buscou, no seu imenso saber, o saber mais universalista de qualquer português do nosso tempo - e peso bem as minhas palavras - esse saber que o fazia mover-se, com singular luminosidade, entre a cultura greco-latina e o pensamento contemporâneo dele; comentar com tanta acutilância Gide como Eliot, Pessoa como Nemésio, Agustina como Soljenitsine, Sena como Sophia, Camões como Garrett; debruçar-se sobre a História Medieval com a mesma distância e a mesma proximidade com que se debruçou sobre os anos 70 portugueses; estudar Marx e Freud como Toynbee ou Spengler; meditar nas grandes questões teológicas, desde os Padres Gregos a Bultmann; aproximar e afastar o mítico do místico. E apenas escolhi alguns dos aspectos do seu pensamento que mais me fascinam, pois foi inesgotável a lista das suas paixões, como o foi a imensidade da sua erudição.
Alguns livros o podem atestar a quem não teve o privilégio de ser seu aluno ou de ter convivido com este homem que nos deixou aos 66 anos, há duas décadas. Mas sabe-se que a obra publicada é uma ínfima parte da que está por publicar e, só quando tudo vier a lume, nos poderemos aproximar melhor da vastidão de uma cultura entendida como generosidade, nas justas palavras de Maria Ivone de Ornellas de Andrade. Será esse o melhor fruto das comemorações decorridas esta semana, que estabelecem em torno dele um consenso tão mais estarrecedor quanto a inveja e a maledicência são os pecados maiores do povo que somos.

4. Diz-se - costuma-se dizer que o povo costuma dizer - que "o saber não ocupa lugar". Ao dizê-lo, tanto se pode estar a dizer que se sabe sempre menos do que se pode saber (seria dito popular de sentido equivalente ao étimo da palavra "filosofia", já que o saber jamais se detém e só o amor a ele pode caracterizar os que o buscam, em busca impossível de ser plenamente satisfeita) como que de nada adianta saber, quando esse saber só contribui para nos roubar a santa paz da ignorância. Evitando o conhecimento a quem esse conhecimento só pode ser nocivo, quer o alcance da frase se destine ao que não devemos conhecer (os frutos da árvore do bem e do mal) ou, cinicamente, se aplique à omissão do que não damos a conhecer para nos poupar a sermos conhecidos.
Mas o saber ocupa lugar e é do lugar desse saber que provém o peso do magistério do padre Manuel Antunes. Porque é de saber que se trata quando pensamos nele e quando o reencontramos, como raros mais neste país, no lugar que nos permite compreender melhor.
Como escreveu o Padre Manuel Antunes: "A universalidade da natureza humana joga com a espantosa diversidade das culturas e das civilizações. É essa universalidade que permite ter uma noção, embora genérica, do todo, é ela que permite, na medida do possível, uma visão sinóptica e compreensiva do mesmo todo, é ela que permite ao homem - a este homem - descobrir-se ou encontrar-se em obras que ele não realizou e que se encontram longe dele tanto no espaço como no tempo: num poema de Homero, numa tragédia de Sófocles, numa escultura de Fídias."
Essa universalidade foi o que o padre Manuel Antunes buscou, através do saber ou do lugar do saber. Sabendo também que no homem, que não é Deus nem átomo perdido, mas ser intermédio - metaxy, dizia ele platonicamente - esse lugar nunca pode situar-se num dos extremos, mas "tocando nos dois ao mesmo tempo", segundo o célebre princípio de Pascal. Isso lhe permitiu a generosidade acima referida, isso me permite aplicar-lhe outro provérbio português de que ele talvez tenha sido o mais belo representante. "Onde há bom saber, poucas vezes há repreender.""

3.12.05

"A pequenina colher", por Eduardo Prado Coelho

Aqui fica, pelo seu manifesto interesse didáctico

"Nesse fenómeno das letras portuguesas que é a produção incansável de Gonçalo M. Tavares existem ciclos, e um deles, um dos mais curiosos e inesperados, chama-se "o bairro". Saíram anteriormente o senhor Valéry, o sr. Henri (trata-se de Henri Michaux, extraordinário poeta francês da segunda metade do século XX) o senhor Brecht, o senhor Juarroz. Acaba agora de lançar "O senhor Kraus" (referido a um jornalista alemão com um forte dimensão aforística e panfletária, Karl Kraus). E também "O senhor Calvino", ambos na editora Caminho.

Que têm em comum todas estes escritores? E que têm em comum os livros que sobre eles tem escrito Gonçalo M. Tavares? As personagens são descritas, não enquanto personagens reais, mas enquanto suportes de experiências do mundo e da linguagem, e das janelas que a linguagem abre ou fecha no mundo. São essas experiências que têm correlações com o universo físico e cultural desses escritores. Pode-se ler estes livros sem ter lido nada dos autores convocados. Alguma coisa se perde, é claro, mas não é exactamente o essencial. No caso de Kraus, por exemplo, não são muitos os que conhecem os seus textos.
E os livros, como são? Feitos de pequenos textos que irrompem no quotidiano para produzir um efeito de verdade. No "Senhor Calvino", Gonçalo M. Tavares explica: "Calvino sabia ainda que uma frase não tinha espaço suficiente para lá caber a verdade; esta não era uma coisa que se pudesse escrever ou soletrar, mas sim una coisa que acontecia. Como um terramoto ou um encontro casual numa esquina, com um velho amigo. A verdade era iletrada, sabia Calvino." Donde, a verdade é da ordem do acontecimento. E cada texto destes livros desenvolve-se na dimensão vertical (para utilizarmos uma palavra de Juarroz), para tentar o encontro casual com a verdade - não a verdade toda, mas uma cintilação de verdade. Estes livros são portanto produtos de uma verticalidade, sem nunca serem poemas (que é a forma "vertical" por excelência).
Note-se que todos eles partem de uma certa inocência das personagens, que de certo modo olham o mundo como se fosse a primeira vez. É ainda a questão metodológica da pequena colher: "Para treinar os músculos da paciência, o senhor Calvino colocava uma colher de café, pequenina, ao lado de uma pá gigante, pá utilizada habitualmente em obras de engenharia. A seguir, impunha a si próprio um objectivo inegociável: um monte de terra (50 quilos do mundo) para ser transportado do ponto A para o ponto B - pontos colocados a 15 metros de distância um do outro. A enorme pá ficava sempre ao lado, parada, mas visível. E Calvino utilizava a minúscula colher de café para executar a tarefa de transportar o monte de terra de um ponto para outro, segurando-a com todos os músculos disponíveis. Com a colher pequenina cada bocado mínimo de terra era como que acariciado pela curiosidade atenta do senhor Calvino."
Daí a conclusão: "Paciente, cumprindo a tarefa, sem desistir ou utilizar a pá, Calvino sentia estar a aprender várias coisas grandes com uma pequenina colher".
Outro ponto em comum: o gosto da lógica, do número, da medida, dos sistemas de metrificação e de gramática do mundo. Isso aproxima-o de um certo pensamento de língua inglesa, em particular, como é óbvio, de Lewis Carroll e Wittgenstein. Todos estas pessoas procuram que o mundo tenha uma ordem subjacente, mas acabam por descobrir que essa lógica é sempre outra, e de certo modo insensata. Mas apenas "insensata" porque escapa ao sentido com que nós estamos habituados a viver no mundo. Há um pôr entre parênteses esse sentido habitual e utilitário, que aproxima o trabalho de Gonçalo M. Tavares da fenomenologia. Daí resulta um timbre que faz que muitas destas páginas possam ser lidas ou ouvidas (para adormecer ou para comer a sopa) por crianças.
O propósito é modesto: a colher é pequena. E essa modéstia (que o afasta das grandes construções germânicas ou do barroco mental de muitos pensadores franceses) também o aproxima do mundo inglês. Por isso, "durante uma vida - pensou Calvino- fazer tudo parecia muito, e era incontável e por isso mesmo de impossível verificação. Se o não conseguisse, pelo menos tentaria fazer metade de tudo, o que para mais tinha a vantagem de ser um número exacto. Não faria pois tudo. Como projectavam alguns escritores jovens de mais, faria metade de tudo, decidira-o naquele momento."
Por fim, há uma questão essencial: Calvino (e recordemos que Italo Calvino criou uma personagem semelhante, o senhor Palomar) utiliza frases que não são nem verdade nem mentira, sem resvalar no entanto para o domínio de uma lógica do vago. Calvino teve ligações ao grupo que em França se designava de OULIPO, o que signicava "atelier literatura potencial". É na invenção do possível que esta literatura se situa, como talvez pudéssemos dizer de toda a literatura, mas no caso desta trata-se de um programa que se formula explicitamente. Gonçalo M. Tavares explica: "Calvino não tinha linguagem suficiente para passar um dia sem inventar (alguns chamavam a isso mentir). (...) É assim mesmo, mas ao contrário. Era esta a forma que Calvino utilizava preferencialmente para esclarecer as pessoas." "Donde, avança-se ao longo da verdade e da mentira, mas para chegar ao avesso, ao contrário de cada verdade e de cada mentira. Evitando o fundamentalismo da verdade: "era possível passar o dia inteiro a dizer mentiras, mas impossível passá-lo a dizer a verdade. Todas as relações pessoais, sociais e entre nações se desmoronariam.""
Estes livros são, como toda a obra de Gonçalo M. Tavares, fascinantes. Estamos perante a maior revelação das letras portuguesas dos últimos anos. Não muito português, nem na escrita, nem nos temas. Mais germânico na prosa de ficção, mais inglês nos livros do "Bairro" (embora sejam poucos os escritores de língua inglesa).
Mas Gonçalo M. Tavares aproxima-se tanto da dimensão enigmática das coisas que faz que o mais simples se possa tornar um enigma; "É simples e rápido de contar: o cão de um vizinho, mais precisamente o senhor D, cegou. Uma doença e a idade. O cão sempre vivera e passeara por ali, pelas redondezas, pelo meio dos sons, dos cheiros, daquele ar. O senhor Calvino ofereceu-se. Ao fim do dia ia buscar o cão cego e levava-o, de coleira, a passear pela cidade.""

2.12.05

A literatura e a vida (1)

Pelo seu manifesto interesse didáctico, para aqui transcrevo o texto de Vasco Pulido Valente "Volta, princesa", parte integrante do Público de hoje:

"Este jornal publicou ontem um artigo sobre a mais venerável lenda política da minha geração: a lenda de Catarina Eufémia. Catarina Eufémia era uma camponesa do Baleizão, que foi morta a tiro, em 1954, durante uma greve, pelo tenente da GNR Carrajola. Segundo a ortodoxia do PC, Catarina estava grávida e grávida apareceu durante toda a ditadura e todo o PREC, em prosa, em verso, em desenho ou em gravura. Agora, um médico, que assistiu à autópsia, vem garantir que ela não estava, de facto, grávida. O que, evidentemente, não atenua o crime, mas dissolve o pouco que restava da história mítica do comunismo português. Para quem foi educado nessa história ou viveu no tempo em ninguém duvidava dela, esta revelação não deixa com certeza de ser melancólica. Até a santa do Baleizão, a imagem pura da inocência massacrada, se perdeu. Como sempre por causa de uma mentira e, ainda por cima, no caso, de uma mentira inútil.
Sucede que, para mim, este episódio não acaba aqui. No Semanário de 20 de Junho de 1987, escrevi uma coluna com o título: "Catarina Eufémia não estava grávida". Falando de Cunhal, falava realmente do extraordinário romance de Clara Pinto Correia Adeus, Princesa e dizia: "No lugar por excelência da luta e do heroísmo revolucionário, no lugar sobre todos mitológico, o Baleizão, Clara Pinto Correia descobre um Alentejo real e terrível. Um Alentejo que não se esqueceu da antiga miséria e a vê voltar pé ante pé, mas já não acredita em nenhuma promessa de libertação. Na terra ficaram só os velhos. As ceifeiras de Manuel Pavia desapareceram das searas. Os sobreiros continuam ali por empréstimo, porque verdadeiramente pertencem à canção de protesto. O cenário da epopeia soçobra e por detrás dele surge um universo insólito de cafés de fórmica, restaurantes típicos e absurdas discotecas, por onde perpassa uma gente gasta que trafica droga, inventa grupos de rock e sonha com negócios dúbios. A própria epopeia - vem eventualmente a descobrir-se - assentava numa falsificação: Catarina Eufémia não estava grávida. Tudo era, afinal, mentira."
Sem saber, Clara Pinto Correia tinha adivinhado. A criação, como lhe compete, criava a realidade. Clara, por causa de um incidente trivial de plagiato, numa terra onde toda a gente plagia (e recebe prémios por isso) saiu dos jornais. No meio da obscena mediocridade que por aí se agita, faz falta a inteligência, a subtileza e o poder de uma grande escritora. Muita falta. Volta, princesa."

1.12.05

Entrevista a Gonçalo M. Tavares

"Uma Entrevista por Mês...

Novembro de 2005 - Gonçalo M. Tavares
Entrevista elaborada a partir de questões formuladas pelos leitores

Eu sou um jovem escritor. Que conselhos me dá para melhorar o meu nível de escrita?


As experiências são determinantes, mas o fundamental é mesmo ler, ler, ler muito e ler bem, ler os melhores autores – e escrever, não parar de escrever.

Saiu agora um livro muito divertido de Vila-Matas que lhe aconselho - Paris nunca se acaba sobre o seu início na actividade de escritor. Desmonta um pouco os mitos e brinca com a questão dos conselhos.

Os escritores que conheço são por norma geniais mas apresentam grandes

falhas nas capacidades humanas (principalmente relacionais), sendo que a

família e as pessoas mais próximas tendem a sofrer muito com isso. O Gonçalo M. Tavares é, para mim, um raro exemplo que contraria esta regra. É um escritor genial que soube muito bem traçar prioridades e dedicar-se a seu tempo à escrita e a seu tempo à família, de forma plena nas duas áreas.

Pessoalmente, pensa que as falhas humanas são o reverso da medalha da

genialidade dos escritores? Como conseguiu conciliar tão bem a família (os afectos) e a escrita?

Tento proteger aquilo que me protege: a família. Por isso ela está sempre num local pouco visível.

De qualquer maneira, cada autor é diferente, há artistas e criadores com os gostos privados mais variados. Há grandes escritores que tiveram uma vida de família e grandes escritores que não a tiveram. A vida pessoal e a criação artística não se cruzam; não é por se ter uma determinada vida pessoal que se faz uma grande obra. Faz-se uma grande obra quando se faz uma grande obra.

"Os senhores" são narrativas difíceis de catalogar, de tal forma que chegaram a ser consideradas narrativas infanto-juvenis. Qual é a intenção que preside a esta ambiguidade no género?

Um dos meus livros a que dou maior importância é O Senhor Valéry, precisamente porque tem leituras que passam pela filosofia - leitores da ‘pesada’ associam-no a Wittgenstein e a outros filósofos e escritores - ao mesmo tempo que pode ser lido por crianças. Ser simples e ter diferentes leituras (camadas) agrada-me.

Os senhores andam muito à volta de episódios lógicos.

Pensa contemplar alguma figura da cultura portuguesa em próximos livros da colecção "O Bairro"?

De imediato não, mas daqui a uns tempos talvez. Vamos ver. O bairro não tem nacionalidades: sairam agora O Senhor Kraus e O Senhor Calvino.

Na colecção "O Bairro", porquê a escolha desses nomes para personagens centrais? A escolha é aleatória ou intencional?

É uma escolha intencional. Começa por ser, de certa forma, uma homenagem a autores. Da mesma forma que podemos dar o nome de alguém de quem gostamos a uma sala ou a um objecto, também podemos dar nomes assim a personagens. É o caso. São nomes de escritores de que gosto.

Partindo do princípio de que alguns dos nomes tratados na colecção "O Bairro" se referem a outros autores, na construção dessas obras o Gonçalo tenta aproximar-se da escrita de cada um deles ou tenta encontrar, na escrita de cada um, pontos de contacto com o seu universo literário?

As histórias de cada senhor são um pouco influenciadas pelo espírito do nome da personagem. Há um cruzamento: não tanto no tipo de escrita, mas mais nos temas: há uma certa influência do universo literário de cada autor. O Senhor Brecht conta histórias cujo pano de fundo tem uma certa relação com os temas que preocupavam B. Brecht.

O nome da colecção "livros pretos" pressupõe alguma relação com os temas neles tratados?

Sim. São livros agressivos e por isso tento avisar os leitores: a capa é um sinal. Para que os leitores não vão ao engano e pensem que é um tipo de escrita semelhante aos Senhores.

Ainda nos "livros pretos", qual a razão para a atribuição de uma sub-classificação "o reino"?

“O Reino” é o título de um romance extenso que é composto de diferentes romances. Para já saíram Um homem: Klaus Klump, A Máquina de Joseph Walser e Jerusalém. São romances ligados entre si (com personagens que estão em diferentes livros) que partem de uma tentativa de compreender o mal. Provavelmente existirão livros pretos que não pertencerão ao “O Reino”, daí a separação.

Qual a razão para a escolha de nomes maioritariamente não-portugueses para os personagens dos "livros pretos"? Esta escolha dos nomes pretende remeter-nos para algum campo ficcional ou geográfico/espacial?

Não foi uma escolha pensada, foi uma escolha instintiva, que surgiu no acto de escrita. A certa altura, os nomes impõem-se, é como se as personagens só se pudessem chamar assim, como se não existissem outros nomes possíveis. Sinto que estas personagens teriam que ter estes nomes, mas não é para as localizar geograficamente. Estes romances poderiam passar-se em qualquer sítio.

Discute-se hoje em dia, a propósito de um grupo de novos autores, a ausência de uma escrita que seja reflexo de um modo de ser e de pensar português. Onde é que o Gonçalo se enquadra, tendo em conta que os seus livros parecem apontar para uma temática universalista?

Julgo que a resposta anterior também responde em parte a esta pergunta. O meu instinto primário foi escrever romances para tentar perceber o mal, como é que ele surge, em que situações se desenvolve e manifesta, etc. A possibilidade de o homem fazer o mal não é característico do nosso país, é característico dos homens em geral. Pessoalmente não quero conhecer e investigar o Homem Português, quero sim perceber e investigar o homem, no geral, e os seus comportamentos.

Julgo que não é muito entusiasmante definir e ficar circunscrito a um pensamento ou uma escrita portuguesas. Eu escrevo em Língua portuguesa e esse é um ponto de partida fundamental. Mas a literatura é um assunto do homem, não de pátrias. Os grandes temas humanos atravessam os vários homens dos vários países. Podemos exprimir a dor que sentimos numa Língua, mas a dor, ela própria não tem gostos ou restrições linguísticas."

Memórias de Fernando Assis Pacheco

"Tinham passado quatro anos desde que publicara a totalidade da sua obra poética na colectânea Musa Irregular (Asa, 1991) e dois sobre o romance Trabalhos e Paixões de Benito Prada (1993). O jornalista que aos poucos foi construindo, quase em segredo, uma obra literária que o tempo se encarregaria de ir iluminando, estava a terminar, na altura, um novo livro de poemas. Teve por título Respiração Assistida - tal como um dos poemas -, mas só haveria de conhecer edição póstuma, em 2003, sob a chancela da Assírio & Alvim e organizado por Abel Barros Baptista. Vinte e cinco poemas, quase todos inéditos, de um poeta que "certamente não se imaginava como um vate, não cultivava uma qualquer essencialidade da poesia, nem se terá atormentado com a ideia mallarmeana de 'um livro que [fosse] um livro'", como escreve Manuel Gusmão, no posfácio.

Foi desta forma que a Assírio & Alvim iniciou a reedição da obra de Assis Pacheco. Depois de Respiração Assistida, seguiu-se, este ano, Memórias de um Craque, colectânea de textos sobre futebol a remeter para a infância e juventude do escritor em Coimbra. Anunciada para este ano estava ainda a reedição de A Musa Irregular. Tal como os anteriores, com capa ilustrada por Bárbara Assis Pacheco, filha do autor. A edição foi, no entanto, adiada para 2006. Seguir-se-ão Walt, Repórter de Serviço, Bookcionário e Teclado Nacional.

Natural de Coimbra, Fernando Santiago Mendes de Assis Pacheco, licenciado em Filologia Germânica, jornalista fundador de O Jornal e da Visão, escritor da auto-ironia, que sobre "Um tal Fernando Assis Pacheco" escreveu "Vivo com ele há anos suficientes/ para poder dizer que o reconheceria/ num dia de Novembro no meio da bruma/ é como uma pessoa de família." Num dia de Novembro seria surpreendido pela "morte merdeira/ coisa ruim de cinza e névoa e cinza"."

Fernando Pessoa também no "Público"

Texto de Kathleen Gomes: "Fernando Pessoa morreu há 70 anos, Fernando Pessoa vai ter uma nova vida. A efeméride é significativa, porque, segundo a legislação, a obra de um autor entra no domínio público passados 70 anos sobre a sua morte. Traduzindo: Pessoa é, a partir de agora, de todos e são várias as editoras que estão a preparar novas edições do poeta português mais idolatrado e traduzido em 36 países.

A exclusividade dos direitos autorais da sua obra coube, até agora, à editora Assírio & Alvim, e irá vigorar até final deste ano. A partir do início de 2006, são várias as edições que vão chegar às livrarias - e às bancas de jornais - com chancelas editoriais diferentes, da Relógio d"Água, que se prepara para publicar uma nova versão do Livro do Desassossego em Janeiro, à nova editora de Zita Seabra, Alêtheia, que anuncia uma edição anotada e comentada de Mensagem para Fevereiro ou Março. Outros projectos incluem uma vasta antologia de sete volumes, de poesia e prosa, coordenada pelo americano Richard Zenith, reconhecido tradutor e investigador pessoano, para o Círculo de Leitores, em conjunto com a Assírio & Alvim, no Outono de 2006, ou um volume antológico organizado por Eduardo Lourenço a convite da revista Visão.

A corrida a Pessoa já começou nos bastidores, portanto. O que é que o torna um autor tão apetecível? "Tem obras adoptadas no sistema de ensino, e isso é o mais apetecível para um editor", resume Zita Seabra, justiticando assim o facto de o primeiro título da sua editora ser a Mensagem, livro integrado nos programas de Português do ensino secundário.

O caso de Pessoa é sui generis porque não é a primeira vez que a sua obra entra no domínio público. Isso acontecera já em 1986, quando o prazo de protecção dos direitos de autor em Portugal era de 50 anos após a morte do autor. A Ática perdeu então os direitos exclusivos e, durante uma década, foram várias as editoras que o publicaram. Mas uma directiva comunitária de 1993 veio ampliar a vigência dos direitos de autor para 70 anos após a morte do autor e os herdeiros de Pessoa, representados pela sua sobrinha Manuela Nogueira, negociaram a reprivatização da obra com a Assírio & Alvim, então dirigida por Manuel Hermínio Monteiro. Esta opção foi objecto de polémica, tendo sido contestada por outras editoras que publicavam Pessoa.

Francisco Vale, editor da Relógio d"Água, lembra que teve de suspender as edições em curso - a Relógio d"Água, como as restantes editoras, podia manter no mercado os títulos já editados, mas não podia proceder a novas edições ou reedições. Vale chegou a editar um primeiro volume do Livro do Desassossego que não teve continuação porque a obra de Pessoa regressou ao domínio privado. Agora, encara a reentrada no domínio público como "uma boa notícia", e prepara-se para recuperar o tempo perdido, com um novo Livro do Desassossego, organizado por Teresa Sobral Cunha, e a reedição de Fausto, entre outros títulos a "anunciar no início do próximo ano".

Decifrar Pessoa

Enquanto detentora exclusiva dos direitos sobre a obra de Pessoa nos últimos oito anos, a Assírio & Alvim levou a cabo um ambicioso projecto de edição quase integral do autor, contando com uma equipa de prestigiados pessoanos liderada por Teresa Rita Lopes que restabeleceu os textos a partir dos manuscritos, muitas vezes com a inclusão de inéditos. Tarefa particularmente espinhosa no caso de Pessoa, dado que publicou muito pouco em vida e a maior parte do seu espólio - a célebre arca de 25 mil papéis comprada pelo Estado em 1979 e depositada na Biblioteca Nacional - é constituída por textos dispersos que o poeta não fixou numa forma acabada. Citando um exemplo, avançado por Richard Zenith, que integra a equipa associada à Assírio: "É um caos total, porque na mesma página pode haver um pedaço de um ensaio sobre a I Guerra Mundial, uma reflexão filosófica e poemas." Acresce a isto o facto de a caligrafia de Pessoa ser, por vezes, "extremamente hieroglífica". E, ainda, o facto de ter deixado muitas variantes de um mesmo poema. "O que é que se publica? A primeira versão? A segunda? A terceira?"

Com duas dezenas de títulos publicados, a Assírio não foi a única editora a publicar Pessoa nos últimos anos. Um outro grupo de investigadores académicos tem vindo a trabalhar paralelamente na releitura dos textos a partir dos originais, e a editá-los na Imprensa Nacional/Casa da Moeda (INCM). Em 1988, a Secretaria de Estado da Cultura criou a Equipa Pessoa com o objectivo de estudar o espólio e fazer edições críticas da obra completa do autor. Ivo Castro, professor da Faculdade de Letras de Lisboa e director da Equipa Pessoa, considera que os dois projectos editoriais são diferentes, uma vez que as edições da Assírio são "imediatamente amigáveis para o utilizador" e contêm um espaço reduzido de informações de natureza técnica, ao passo que as da INCM reconstituem todas as fases de interpretação e revisão de que o texto foi alvo. Ou seja: "A nossa edição destina-se a um público que queira ler de lápis na mão".

INCM edita Caeiro

As duas equipas, independentes uma da outra, prometem continuar a trabalhar. "O essencial está feito", diz Manuel Rosa, editor da Assírio & Alvim, que irá publicar, até ao início de 2006, três volumes da poesia ortónima de Pessoa. A INCM anuncia para a primeira metade do próximo ano um volume de poemas ruba"iyat (de inspiração persa) e um livro de ensaio sobre os temas do génio e da loucura, e, mais tarde, a poesia de Alberto Caeiro.

Ivo Castro saúda a entrada de Pessoa no domínio público "porque só com plena liberdade de publicação se faz a comparação entre o que é bom e o que não é". Segundo este investigador, os dez anos em que Pessoa foi público corresponderam à "fase mais enérgica, mais diversificada e mais livre da edição de Pessoa". "Todas as editoras devem estar com vontade de fazer alguma coisa", calcula João Rodrigues, da Dom Quixote, embora Pessoa não faça parte dos seus projectos editoriais para 2006. "Há falta de edições da sua obra para grande público, eventualmente gostaria de fazer algo nesse sentido, que trouxesse novos leitores", afirma. Premonitória, a última frase que Pessoa escreveu, no dia anterior à sua morte: "I know not what tomorrow will bring" ("Não sei o que o amanhã trará").
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O 70º aniversário da mortede Pessoa no "Diário de Notícias"

"Pessoa", por Ana Marques Gastão

"Tudo em Fernando Pessoa - cujos 70 anos da morte hoje decorrem - é fragmento, não propriamente caos, mas texto em dúvida, incompletude. Pessoa, ele mesmo, "não existe, propriamente falando", tudo nele é (des)construção, descentramento. Álvaro de Campos, um dos heterónimos, tinha razão, e usar as suas palavras é adequado no momento da publicação da obra ortónima em três volumes, dois a sair em Dezembro (1902-1917 e 1918-1930) e um terceiro (1931-1935), em 2006, numa edição criteriosa de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine (Assírio & Alvim).

Cumpre-se assim o desejo dos amantes e estudiosos de Pessoa (cuja obra entra hoje no domínio público) que passam a dispor do "corpus inteiro da sua poesia ortónima em português, pelo menos a não atribuída aos heterónimos e a outras personalidades."Mas - refere-se no posfácio do terceiro volume - "a sede de uma poesia toda ou de uma poesia completa continuará a não poder ver--se inteiramente satisfeita", dada a dimensão inacabada e múltipla da obra literária pessoana.

A edição reúne os poemas éditos em português assinados com o nome de Fernando Pessoa e aqueles cuja publicação foi fruto de intervenção de diversos investigadores (entre 1935 e 2005). Incluem-se ainda 234 inéditos no primeiro tomo, quase todos escritos entre 1902 e 1915, datas não contempladas, até agora, pela edição crítica da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, dirigida por Ivo Castro; oito ou nove no segundo; alguns mais no terceiro. A apresentação segue uma ordem cronológica.

Quanto aos primeiros, explica Manuela Parreira da Silva - professora da área de tradução da Universidade Nova de Lisboa e pertencente ao grupo de investigação da obra pessoana, dirigido por Teresa Rita Lopes - reproduziu-se o texto publicado pelo autor em revistas e outras publicações, excluindo a Mensagem; relativamente aos segundos, foram objecto de uma refixação (novas propostas de leitura, articulação de estrofes ou redefinição do corpo do poema), a partir dos documentos autógrafos existentes no espólio da Biblioteca Nacional. Tendo em conta que as sucessivas reimpressões da obra estão cheias de gralhas e erros (atribuição de autoria, data, etc.), tentou conferir-se os textos com os originais sempre que encontrados, recusando uma "leitura impressionista", que já conduziu a resultados desrazoáveis, apoiando-se no sentido. É a falta deste, numa primeira abordagem, a alertar, muitas vezes, para a necessidade de procura de outros caminhos.

Há nesta edição novos poemas, uns mais relevantes do que outros (o que contraria a ideia de que toda a obra de qualidade teria sido publicada em vida) e novas leituras de poemas anteriormente publicados, o que, segundo Manuela Parreira da Silva, "nem sempre é bem aceite por alguns pessoanos". Surgem, por outro lado, casos em que se considera serem dois poemas o que antes foi entendido como um e vice-versa.

A releitura crítica permitiu, comenta a investigadora, questionar a justeza de certas atribuições de autoria "Este é um dos problemas principais do estudioso pessoano, o que torna discutível a inclusão no cânone de poemas recentemente editados e atribuídos a Pessoa na Edição Crítica."

"Os inéditos, esses, são de diferentes ordem e valor, dos poemas de juventude aos do poeta maduro. Esta edição, que pode funcionar como um historial dando conta da evolução do autor, abrange o Pessoa mesmo antes da existência lisboeta e portuguesa, coincidindo com a transição da adolescência para a juventude. Por ela passam ainda a descoberta da sexualidade, a luta interior - uma constante da sua poesia -, o criador já seguro e o dos tempos anteriores à morte.

A poesia ortónima, diz Manuela Parreira da Silva, segue, regra geral, características formais mais tradicionais. Quanto à temática, é permanente a da multiplicidade do Eu; o não ser bem ou suficientemente amado; o estar entre, entre o que é e o que poderia ter sido, a nostalgia da infância. Se há textos dirigidos a mulheres como a Ophelia, também os há sobre o amor homossexual. Em tudo sempre persistindo a saudade do que nunca chegou a ser no labirinto de si mesmo. Os poemas à la manière de A. Caeiro, Bateram com uma bota na cabeça de metade do silêncio, eventualmente revelador de um Pessoa anunciador do surrealismo, e A Vida de Arthur Rimbaud abrem leituras para a obra de um poeta ainda desconhecido."



Cartas são um laboratório da vida literária

"Como se liga a poesia de Pessoa à correspondência? A resposta será certamente a mesma, tanto para a obra epistolar como para os escritos autobiográficos o discurso dir--se-ia em ambos os casos de uma "sinceridade traduzida, construída". O livro Realidade e Ficção/Para uma Biografia Epistolar de Fernando Pessoa, de Manuela Parreira da Silva (edição Assírio & Alvim, 2004), ajuda, na sua densa legibilidade, a uma melhor compreensão do universo pessoano definido exemplarmente pelo poeta "O que em mim sente 'stá pensando."

Basta seguir o percurso labiríntico da carta de despedida que Fernando Pessoa endereça a Ophelia, primeiro escrita à máquina, depois interrompida e seguida de um poema em inglês com a mesma temática; novamente retomada (conhecendo-se-lhe posteriores acrescentos a lápis), logo se iniciando um outro poema na mesma língua...

Explica a ensaísta, também organizadora das edições da Poesia de Ricardo Reis (Assírio), da Correspondência Inédita (Livros Horizonte) e dos dois volumes da Correspondência (Assírio) "Há uma construção. Provavelmente Pessoa estaria a ser sincero perante uma ruptura, algo que certamente o abalou e que iria abalar Ophelia, mas nunca deixa de ser escritor."

Em Pessoa "há sempre o filtro entre o sentimento e a sua expressão". É sempre outro, como tão bem escreveu Octavio Paz, assinalando a sua poética do fingimento "Ele escreve num segundo momento, não a quente", diz a também investigadora do Instituto de Estudos sobre o Modernismo, cuja Reflexão Prévia sobre o Discurso Epistolar (incluída em Realidade e Ficção) é modelar na afirmação da "carta-corpo da escrita" também como espaço de criação.

"Produzida pela distância e produtora dessa distância", a carta penetra na problemática do "fingimento/sinceridade", tão pessoano. No seu dramatismo o lugar do Eu deixa-se contaminar, sublinha Manuela Parreira da Silva, por um "narcisismo essencial" que se afirma como espaço de representação.

Ler/reler esta correspondência múltipla de Fernando Pessoa no momento em que se continuam a revelar facetas desconhecidas do poeta ilumina, de alguma forma, a sua inacabada obra como se de um "laboratório do literário" se tratasse "A verdade organiza a ficção, mas é a esta que temos acesso", conclui Manuela Parreira da Silva."


Empreendedor e inventor

"É o Pessoa empreendedor e inventor, por vezes alucinante, que o escritor António Mega Ferreira foi descobrir. E fê-lo pelo lado da sobrevivência material, daquilo que o poeta chamava "não sem desconfiança a vida prática", fazendo justiça ao "inultrapassável trabalho de João Rui de Sousa" (Fernando Pessoa, Empregado de Escritório, Sitese, 1985). Sobre as suas iniciativas comerciais, empresariais e em nome individual, tratam os textos incluídos na obra Fazer pela Vida/Um Retrato de Fernando Pessoa, o empreendedor (Assírio &Alvim).

Estuda-se neste livro, de leitura aliciante, o que foi "empreendimento seu, o de Pessoa, mesmo que sonhado (com os seus numerosos inventos)". Mega Ferreira fala daquele que foi algumas vezes até empresário, abordando outras suas tentativas para "fazer dinheiro".

A empresa Cosmópolis - que Zenith entende poder ter sido o primeiro nome da Olisipo -, é um impressionante exemplo da largueza de interesses de Pessoa. Tratava o projecto de informações diárias a propósito de câmbios, de partidas e chegadas de vapores, de viagens de comboio, de traduções, da montagem e realização de escritos, de buscas e trabalhos literários por encomenda, etc.

Quanto ao Pessoa inventor, refira-se a "carta-sobrescrito", que viria a popularizar-se na II Guerra Mundial, um carreto da máquina de escrever (na ilustração), um sistema de estenografia, um projecto de máquina para guardar papéis... O Pessoa editor não fica esquecido neste livro revelador."


O poeta melódico-electrónico

"A Casa Fernando Pessoa, criada em 1993, pela Câmara Municipal de Lisboa, assinala os 70 anos da morte do poeta e simultaneamente o seu 12.º aniversário, com a apresentação, no seu espaço, às 21.00, de Wordsong Pessoa. Trata-se de um projecto pluridisciplinar que resulta na edição de um livro, de um CD e um DVD. Realiza-se ainda um ciclo de espectáculos em que o grupo integrado por Pedro d'Orey, Alexandre Cortez, Nuno Grácio, Filipe Valentim e a artista plástica Rita Sá revisita a obra pessoana. Do ponto de vista musical, os criadores transformam, manipulam, desconstroem e reconstroem, em experiências sonoras de formato melódico-electrónico, a escrita poé- tica do autor de Mensagem."